MEMÓRIA

Brasil comemora o centenário de Vinicius de Moraes

No dia 9 de julho de 1980, ele se despediu, em silêncio, lentamente: morreu numa banheira de espuma

Rogério Verzignasse
19/10/2013 às 14:51.
Atualizado em 26/04/2022 às 05:53
Vinícius fez amizade com Toquinho no começo dos anos 70 e com o novo parceiro corria o Brasil para apresentações ( Divulgação)

Vinícius fez amizade com Toquinho no começo dos anos 70 e com o novo parceiro corria o Brasil para apresentações ( Divulgação)

O biógrafo escreveu. Ninguém foi tão apaixonado como Vinicius de Moraes E ele não amou só uma mulher. Amou todas. E, para elas, dedicou versos insuperáveis. A dor, o ciúme, o abandono e a solidão o inspiravam. Com uma mão rabiscava os versos, com a outra erguia o copo de uísque. Politicamente incorreto para alguns; burguês alienado para outros; subversivo para ditadores de plantão. O fato, no entanto, é que ele pouco se lixava com os rótulos. Romântico na essência, mas avesso a convenções e modismos. Podia se embriagar de sentimentalismo sem cair no ridículo. Cantava a beleza da vida, sem soar brega. O poetinha — que neste dia 19 de outubro comemoraria 100 anos de idade — se consagrou com um dos maiores nomes da MPB.Vinicius nasceu na Gávea, em 1913. Era filho de Lídia e Clodoaldo Pereira da Silva Moraes. O cidadão se metia a escrever versos, mas que ganhava a vida como professor de francês. Bom, o casal precisou de mudar para a Ilha do Governador e deixou o garoto na casa dos avós, no Botafogo. Mas o garoto ia para a ilha todos os finais de semana. Segundo o biógrafo João Carlos Pecci, aquele era o seu paraíso.Os amigos contam que o moleque, um belo dia, resolveu aprender a nadar. Do alto da Ponte do Cocotá, ele se jogou no mar. Se debateu um pouco, certo, mas saiu nadando. Em seguida, se jogou de outros pontos, buscando trechos mais profundos. É, era assim. Desde pequeno, Vinicius de Moraes fazia o que lhe dava na telha. Não dava satisfação, não cumpria horários, se divertia a valer. E na ilha descobriu prazeres. Passava horas proseando com os pescadores, ouvindo o mar, olhando estrelas. Também por ali, adolescente, conheceu as primeiras namoradas: Eli, Marina, Maria, Santa...E foi na biblioteca do pai que nasceu o amor pelas letras. Mergulhava em clássicos da literatura. E roubava um ou outro verso escrito pelo pai para impressionar as meninas. Pegou tal paixão pela arte que virou poeta.E mesmo fazendo faculdade de Direito no Catete, ele não abandonou as rimas, e as mostrava para intelectuais de cabelos brancos. Detalhe: ele não compartilhava poesias para os amigos da turma para não virar piadinha de marmanjos brucutus. Em meados da década de 30, formado, Vinicius conseguiu uma bolsa para estudar língua e literatura inglesas na Universidade de Oxford. Em 1941, de volta ao Brasil, se empregou como crítico de cinema no jornal A Manhã. Em 1943, foi aprovado no concurso público e se se tornou diplomata.Era vice-cônsul em Los Angeles, mas odiava formalidades, protocolos, gravata, obrigações. Por lá, ele fez amizade com astros do jazz. E, quando vinha o Brasil, passava as noites em botequins, se apresentando com velhos músicos conhecidos. E fazia questão de cumprir uma romaria pelos bairros românticos do Rio, onde pedia a bênção de feras como Nelson Cavaquinho, Noel Rosa, Pixinguinha… Mas a década de 50 chegou, e provocou uma reviravolta. Ao lado de um grande amigo, o pianista Tom Jobim, Vinicius foi um dos pioneiros da bossa nova, escola artística que aliava novidades melódicas e harmônicas, jogos semânticos e metáforas fora do comum. Nunca se explorou tanto o encantamento das palavras. Era música genuinamente brasileira, que passou a despertar no público a paixão pelas curvas femininas, pelas praias, pelas montanhas, pela paisagem. Se mostrava ao mundo o País encantador, habitado por criaturas bem resolvidas.O destino, no entanto, pregou uma peça naquela geração de grandes artistas. O golpe militar de 1964 mudava regras e instalava o medo. E o diplomata Vinicius, no Exterior, decidiu não abrir mão de seus próprios valores. Continuava compondo, continuava rejeitando formalidades do cargo, ainda se relacionava com intelectuais e cultuava amizade com ícones de esquerda, como o poeta chileno Pablo Neruda. Foi lá, nos anos difíceis da ditadura militar, que o poeta lançou uma coletânea que tinha, como carro-chefe, 'Operário em Construção', poema épico, que falava de patrões explorando a mão de obra barata. Foi por conta da postura política que Vinicius foi enquadrado, no Ato Institucional 5, em uma relação de “boêmios, bêbados e homossexuais” que supostamente denegriam a imagem da Nação e deviam abandonar o corpo diplomático nacional. ToquinhoSim, sim, Vinicius se abateu com a punição. E resolveu passar o resto da vida compondo versos, embalado por muito uísque e cigarros. Fez amizade com Toquinho no começo dos anos 70, e com o novo parceiro corria o Brasil para apresentações. Naquela década, a crítica já o chamava de decadente, e a voz do parceiro garantia a pureza do som aos microfones. Mas Vinicius compôs até o fim. Passou todo o dia 8 de julho de 1980, por exemplo, acertando os detalhes para o lançamento do segundo volume do álbum 'A Arca de Noé', que se consagraria mais tarde como um megassucesso voltado ao público infantil. Nem o próprio Toquinho podia imaginar que o mestre se despedia.No comecinho da manhã seguinte, dia 9 de julho, Vinicius de Moraes de despiu, abriu a torneira, se ajeitou na banheira de espuma. E dali não saiu. Ele, que sofria na época com isquemia (provocada por obstrução das artérias) e estava proibido de beber. A voz já estava cansada, o homem andava abatido. E ele morreu em silêncio, lentamente. Como o ele próprio já havia anunciado, anos antes: “Da morte, apenas nascemos. Imensamente”, disse.  

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