criada há 32 anos

A retomada da Lei Rouanet

A maior Lei Federal de Incentivo à Cultura passou por mudanças para tentar recuperar o fôlego cultural

Cibele Vieira/ [email protected]
04/04/2023 às 10:06.
Atualizado em 04/04/2023 às 10:06
O músico Luccas Soares, fundador do Instituto Anelo, no Jardim Florence I, afirma que é quase impossível fazer cultura no País se não tiver leis de incentivo (Divulgação)

O músico Luccas Soares, fundador do Instituto Anelo, no Jardim Florence I, afirma que é quase impossível fazer cultura no País se não tiver leis de incentivo (Divulgação)

Embora o incentivo à cultura seja um dever do Estado estabelecido pela Constituição Federal em seu artigo 215, nos últimos anos as leis de fomento têm sido alvo de desinformação e críticas. Principalmente a Lei Rouanet, criada há 32 anos, que se viu arrastada para o centro das ofensivas nas redes sociais, com acusação de "mamatas" para os artistas e a implantação, por parte do governo anterior, de uma política de restrições. No dia 24 de março, o Ministério da Cultura publicou o novo decreto que regulamenta o fomento cultural no país. Entre os avanços anunciados pela medida estão a retomada da produção cultural e artística com mais transparência, segurança jurídica e democratização do acesso. 

Principal ferramenta de fomento à cultura no Brasil, a Lei Rouanet injeta na economia criativa cerca de R$ 2 bilhões por ano e é responsável pelo patrocínio anual de cerca de 3.500 ações culturais, segundo o Ministério da Cultura. As novas regras - que ainda aguardam a regulamentação - servirão de base para a padronização dos mecanismos de transferência de recursos, acompanhamento e prestação de contas de ações culturais. "Era uma medida necessária e urgente", analisa o produtor cultural Antoine Kolokathis, que desde 1999 atua em Campinas com consultoria e desenvolvimento de projetos culturais, sociais e esportivos em parceria com empresas, artistas, ONGs e órgãos públicos. A política de desmonte da área cultural que vinha ocorrendo, segundo ele, inviabilizou o trabalho de grupos importantes como o "Doutores da Alegria", o "Museu do Esporte" e até a "Associação Griots" de contadores de histórias em Campinas.

Luccas Soares, músico fundador do Instituto Anelo, afirma que "é quase impossível fazer cultura no País se não tiver leis de incentivo". Se não fosse isso, comenta, "muitos meninos e meninas da periferia não teriam acesso a um direito básico, que é a educação artística, a cultura, arte e música". Fundado no ano 2000 no Jardim Florence I, o Anelo já atendeu mais de 10 mil alunos em seus projetos de musicalização nesses 23 anos. "Muitos se tornaram músicos profissionais, professores, produtores", orgulha o fundador. Mas alerta que não é fácil. "As pessoas acham que é só fazer o projeto e captar. Mas é muito difícil conseguir o aporte financeiro, principalmente para quem está na periferia". O primeiro projeto do Instituto foi feito em 2010 e por dois anos tentaram conseguir um patrocinador, sem sucesso. Somente em 2018, com a entidade mais madura e com maior visibilidade, as empresas começaram a acreditar. Mesmo assim, a entidade começa o ano com cerca de 700 alunos e somente 50% dos recursos necessários. 

Como funciona 

Recentemente a atriz Claudia Raia foi arrastada para o centro das ofensivas das redes sociais, acusada erroneamente de "receber" R$ 5 milhões do governo. Na verdade, um projeto para montagem de duas peças de teatro do qual a artista faz parte recebeu autorização para captar o valor, ou seja, os produtores agora podem buscar patrocinadores em troca de renúncia fiscal. Este é apenas um exemplo do que o desconhecimento sobre a legislação provoca. 

Lei Rouanet é o nome popularmente usado para o Programa Nacional de Apoio à Cultura, um amplo programa de financiamento público de cultura criado em 1991 pela Lei nº 8313. O nome homenageia o secretário de Cultura à época, Sérgio Paulo Rouanet, e abrange três mecanismos diferentes: o Incentivo à Cultura (por meio de renúncia fiscal), o Fundo Nacional de Cultura e os Fundos de Investimento Cultural e Artístico. O mais conhecido é o Incentivo à Cultura, que acabou sendo chamado de Lei Rouanet. É uma maneira indireta de o Estado financiar projetos, uma vez que não há qualquer repasse direto de dinheiro do Governo Federal para artistas ou produtores culturais.

Na prática, funciona assim: pessoas físicas ou empresas privadas podem destinar um percentual (previsto em lei) de seu Imposto de Renda para financiar projetos culturais que tenham sido previamente aprovados. O governo, então, abre mão desse imposto para que o dinheiro seja usado na realização do projeto. Mas um projeto cultural só pode ser executado com recursos dessa lei se seguir alguns pré-requisitos, como contrapartidas sociais, por exemplo, e se for validado por um corpo técnico que autoriza os produtores desse projeto a captar recursos. Mesmo com essa aprovação, a iniciativa só receberá o dinheiro caso alguma empresa ou pessoa física queira patrocinar. Cada projeto tem um prazo de até 24 meses para captar o valor proposto junto as empresas e, de acordo com as novas regras, esse prazo poderá ser prorrogado. 

O que mudou 

O decreto assinado há alguns dias estabelece regras e procedimentos gerais para os mecanismos de fomento cultural direto (Lei Paulo Gustavo, Lei Aldir Blanc e Cultura Viva), fomento indireto (Lei Rouanet), e outras políticas públicas culturais - definindo objetivos e beneficiários. Agora é aguardada a publicação da Instrução Normativa, necessária para o cumprimento das novas regras, trazendo os procedimentos detalhados. De maneira geral, de acordo com o especialista Antoine Kolokathis, "as mudanças trouxeram maior fluidez e desburocratizaram alguns aspectos". Ele cita como exemplo a metodologia de prestação de contas que foi flexibilizada e está mais focada na fiscalização da entrega do produto. "Houve definição de novos critérios de avaliação de resultados por tamanho de projeto, simplificando os processos e mantendo a segurança jurídica", diz. 

Outra medida positiva, segundo Antoine, foi o retorno da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC) ao seu papel original de assessorar a gestão do Programa. A Comissão ganhou também novos membros para ampliar sua representatividade em todas as regiões brasileiras, incluindo representante dos povos indígenas, da cultura popular, de especialistas em acessibilidades e combate a discriminações e preconceitos. Outra regra que ganhou mais clareza no novo decreto é sobre a melhor distribuição e os recursos entre as regiões, ampliando os investimentos nas regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste e a projetos de maior impacto social. 

Também está de volta a possibilidade de execução de planos anuais ou plurianuais apresentados por instituições culturais que exigem planejamento a longo prazo, como museus, orquestras, corpos artísticos estáveis e festivais, por exemplo. A nova regulamentação estimula ainda realização de ações afirmativas para mulheres, pessoas negras, povos indígenas, comunidades tradicionais, de terreiro e quilombolas, de populações nômades e povos ciganos, de pessoas do segmento LGBTI+, de pessoas com deficiência e de outros grupos minoritários.

O produtor cultural Antoine Kolokathis defende que as novas regras da Lei Rouanet eram necessárias e urgentes (Divulgação)

O produtor cultural Antoine Kolokathis defende que as novas regras da Lei Rouanet eram necessárias e urgentes (Divulgação)

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