com a visão indígena

A ópera ‘O Guarani’ sob a ótica de Ailton Krenak

Após 23 anos sem ser montada, a obra-prima de Carlos Gomes chega ao Theatro Municipal de São Paulo sob a concepção de pensadores e artistas indígenas

Cibele Vieira/ [email protected]
13/05/2023 às 10:55.
Atualizado em 13/05/2023 às 14:32
Obra de Carlos Gomes ocupa o palco do Theatro Municipal de São Paulo (Divulgação)

Obra de Carlos Gomes ocupa o palco do Theatro Municipal de São Paulo (Divulgação)

Desde sexta-feira (12) é celebrada a volta de uma obra-prima aos palcos do Theatro Municipal de São Paulo, após 104 anos de sua apresentação no mesmo local: a ópera "O Guarani", de Carlos Gomes, apresentada no período de 12 a 21 de maio. Desta vez, entretanto, ela é encenada com a concepção-geral do líder indígena, ambientalista, filósofo e escritor Ailton Krenak, com direção cênica da premiada diretora Cibele Forjaz, direção musical do maestro Roberto Minczuk, a participação de uma Orquestra e Coro Guarani do Jaraguá Kyre'y kuery, além de artistas indígenas, como o curador, designer e ilustrador Denilson Baniwa, responsável pela cenografia e codireção de arte. Na maioria dos dias, entretanto, os ingressos já estão esgotados e ainda não há perspectiva da ópera circular por outras cidades.

"O Guarani" de Carlos Gomes, ópera com duração de 180 minutos em quatro atos, tem seu libreto assinado por Antonio Scalvini e Carlo D'Ormeville e foi inspirado no romance de José de Alencar. Além de sua abertura ser muito conhecida como o tema do programa radiofônico oficial estatal "A Voz do Brasil" - desde sua estreia, em 1935 - a obra original carrega em si o romantismo e a busca identitária da obra literária que a inspirou. A ópera estreou em 1870 no Teatro Scala de Milão e montá-la em 2023 requer atualizações, explica a diretora geral do Theatro Municipal de São Paulo, Andrea Caruso Saturnino. "Assumimos o desafio de reunir um coletivo multicultural, incluindo pessoas com experiência fora do ambiente da ópera, no propósito de revelar outras possibilidades do libreto inspirado em José de Alencar", diz.

Novos tempos, a mesma história

Na história original, a jovem Cecília (16 anos e filha de um nobre português), se apaixona por Peri (um jovem indígena de 18 anos). O amor desta união desafia questões culturais, mas também estão presentes no enredo a disputa entre os povos das tribos Aimoré e Guarani e o interesse econômico da Espanha na colônia portuguesa. Esse interesse é expresso pela figura de Gonzales, aventureiro que se interessa por Cecília e pelo domínio das terras dos indígenas. "O Guarani", de Carlos Gomes, foi programado na temporada 2023 com uma premissa decolonial, um pensamento que se desprende de uma lógica única para se abrir à pluralidade de vozes e caminhos. Uma das inovações é a presença constante em cena de indígenas guaranis do Jaraguá (terra indígena localizada no sudoeste do estado São Paulo).

Na montagem atual, as questões de identidade presentes no original se rearticulam sem deixar de fazer reverência à importância histórica da obra de Carlos Gomes e a de José de Alencar. "Estamos fazendo uma montagem preservando Carlos Gomes e atendendo também ao apelo de Mário de Andrade a que salvemos Peri!, revelando possibilidades do libreto à luz de outras leituras da antropologia e das artes onde os indígenas despontam nesse século 21, com disposição a tomar a palavra, sem licença ou sem temor da crase (!) - que como já foi dito, não foi feita para humilhar a ninguém", explica Ailton Krenak. Ele é ativista do movimento socioambiental e de defesa dos direitos indígenas, organizou a Aliança dos Povos da Floresta, que reúne comunidades ribeirinhas e indígenas na Amazônia.

"A encenação está longe de ser romântica, mas respeita e incorpora a força simbólica e icônica dessa primeira grande ópera brasileira", pontua a diretora Cibele Forjaz. "É uma releitura viva, para o momento presente, consciente de que estamos num país multiétnico, plurilinguístico, com culturas diversas que têm o direito de permanecerem diversas e de serem assim reconhecidas e valoradas", completa. Carlos Gomes certamente não imaginaria que temas que perpassam sua ópera fossem tão atuais em 2023, quando ouvimos muito sobre minérios, destruição, morte e povos originários.

O líder indígena e ambientalista Ailton Krenak assina a concepção-geral do espetáculo (Divulgação)

O líder indígena e ambientalista Ailton Krenak assina a concepção-geral do espetáculo (Divulgação)

Um elenco especial

Na versão atual, entre os intérpretes de Peri, destacam-se o brasileiro Atalla Ayan e o chileno Enrique Bravo nos diferentes elencos das récitas e, como Gonzales, se alternam os barítonos brasileiros Rodrigo Esteves e David Marcondes. Ceci terá como intérpretes a soprano bielorrusa Nadine Koutcher e a gaúcha Debora Faustino. Para o maestro Roberto Minczuk, esta é uma obra que tem um brilho único, não apenas nas vozes dos personagens. "Traz partes virtuosísticas, empolgantes e sublimes para o Coro e também para a Orquestra. É uma ópera de um poder único e vivacidade que impressionam".

Presente em cena estão representantes de diversos povos indígenas, como o ator David Vera Popygua Ju, que interpreta Peri-Eté, um Guarani "verdadeiro" que se relaciona com os cantores líricos. Também a atriz, artista, ativista e poeta Zahy Tentehar, do povo Tentehar-Guajajara, nascida na Reserva Indígena Cana Brava, no Maranhão. "São Paulo é uma terra guarani e, para a maior parte das pessoas, eles são invisíveis. Mas, na ópera, seu canto estará presente", diz Cibele Forjaz. Uma orquestra indígena, com instrumentos de sua cultura, seu coro e sua dança também estarão evidenciados em momentos específicos da récita.

As obras de Denilson Baniwa - artista brasileiro, curador, designer, ilustrador e ativista dos direitos indígenas - interagem com a arquitetura do Theatro e compõem o conceito no qual se desenrola a ação. Na terra explorada, mundo-mercadoria e mundo-natureza se contrapõem visualmente, relacionando ouro e corpo, sangue e petróleo, e evidenciando uma exploração agressiva, irreversível e que segue em curso até os dias atuais. "É uma obra de mais de cem anos e é a primeira vez que tem pessoas indígenas a reelaborando e pensando a partir de uma perspectiva atual e estou feliz por participar elaborando essa imagem", comenta o artista. Ele trespassa linguagens visuais da tradição ocidental com as de seu povo, utilizando performance, pintura, projeções a laser e imagens digitais.

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