Nelson Homem de Mello (AAN)
Confesso. Tenho dois defeitos e a gravidade deles depende das interpretações pessoais: sou fumante e gosto muito de saborear um bom vinho durante o jantar e na companhia de amigos.
O cigarro, já sei, faz mal à saúde e procuro contrabalançar seus efeitos praticando esportes. Acho que dá certo porque ainda consigo nadar 50 metros debaixo d’água e até pareço o Rafael Nadal jogando tênis (esqueçam a qualidade do jogo, estou falando em correr muito, de um lado para o outro da quadra).
Mas o fato é que bebo e fumo. São práticas perigosas hoje em dia — e não estou me referindo exatamente à saúde.
Vejamos a Lei Antifumo. É plágio minucioso da que foi adotada pela Inglaterra — salvo engano, o único país europeu que proíbe fumar em qualquer lugar que seja coberto. Na Espanha, como um bom exemplo, nenhum bar ou restaurante permite o cigarro, mas fumar é liberado em mesas nas calçadas, mesmo que — diferente do exemplo britânico — elas tenham proteção para o sol, vento e chuva.
O Brasil preferiu o modelo inglês, mas o copiador de leis deu o seu toque pessoal e é justamente nesse fato que mora o perigo. Aqui, mesas na calçada, mesmo ao ar livre, estão impedidas de receber fumantes caso inexista algum tipo de vedação à fumaça para os fregueses que estão dentro do estabelecimento.
O resultado criou uma cena insólita: se o cidadão que está na mesa ao ar livre quiser fumar, precisa ficar em pé. Para a Lei Antifumo brasileira, o sujeito sentado é freguês. Se estiver em pé, é transeunte — e, portanto, imune ao enquadramento na lei. Qualquer inglês que visse uma situação dessas iria rolar de rir.
E agora a Lei Seca. Como sempre, ela segue o modelo de outros países, mas desta vez capricharam. As fontes inspiradoras para adoção da tolerância zero são a Noruega e a Suécia, que estão no topo de todos os rankings de qualidade de vida. Assim como a educação, a saúde e a segurança, o transporte público daqueles dois países também é de altíssima qualidade. Noruegueses e suecos podem se dar ao luxo de usar automóvel só para passear, enquanto no Brasil vocês sabem muito bem do que estamos falando.
Lá, a segurança atinge índices próximos da perfeição, de forma que os cidadãos podem andar sem medo a pé por qualquer região de suas cidades, em qualquer horário do dia ou da noite. Aqui, experimentem e depois me contem...
Antes de continuar, um adendo importante: sou totalmente favorável à adoção de penas para quem abusa do consumo de qualquer droga, lícita ou ilícita, a ponto de oferecer qualquer tipo de risco a terceiros. E sei perfeitamente que, no caso específico do álcool, é um fator decisivo para a ocorrência de acidentes de trânsito, dependendo da quantidade ingerida e da personalidade do motorista, se bem que, para a Lei Seca, isso não quer dizer absolutamente nada.
A discussão sobre proliferação de leis poderia incluir uma avaliação dos efeitos da filosofia de Thomas Hobbes sobre os governos modernos, já que ele escreveu, tal e qual Maquiavel, uma espécie de manual — o Leviatã — para a dominação dos cidadãos por parte do Estado, através de uma abundante, detalhada e ameaçadora legislação que transforme a população numa dócil e obediente manada, anulando os valores pessoais de todos.
Mas isso fica para outra hora. Minha perplexidade atual se concentra no fato de que, se algum tipo específico de pessoa representar perigo, sempre vai aparecer um legislador para estender as possíveis penalidades aos demais, sem exceções, como se pode verificar no caso da Lei Seca. Seria o mesmo que o pai colocar todos os filhos de castigo porque um deles cometeu uma travessura.
Pela nova legislação, qualquer quantidade de álcool no sangue é suficiente para que o cidadão, de alguma forma, seja punido. Até 0,29 mg de substância alcoólica por litro de ar expelido no bafômetro (ou etilômetro, como preferem as autoridades) um motorista tem a carteira confiscada por um ano e paga multa. Se passar de 0,3 mg, vai preso por ter cometido crime, pode ficar detido entre seis meses a um ano, paga multa e a carteira é suspensa ou definitivamente cassada.
Vamos a um exemplo, simples e prático, que poderia ser o caso comum de alguém que vai a um restaurante, toma um cálice de vinho ou um copo de chope e volta para casa de carro. Alguém aí sentiu-se retratado?
Mas, fiquem tranquilos, o exemplo é outro. Se a coisa é assim mesmo tão séria e a legislação queira desempenhar seu papel de forma absolutamente draconiana e enquadrar em crime todos os infratores, mesmo aqueles que primam sua conduta pela responsabilidade (e não será um copo de cerveja que vai transformá-los num perigo), sugiro que submetam ao exame do bafômetro os padres que dirijam automóveis logo depois da missa.
Considerando que vários deles podem rezar mais de uma por dia — e em todas acontece a celebração do sangue de Cristo através do vinho — é possível que tenhamos na vizinhança das igrejas uma extensa quantidade de infratores punidos e criminosos presos (grafei criminosos sem aspas de propósito, para que se compreenda melhor ainda o incrível — quase inacreditável — rigor dessa lei, que pode mandar um religioso para a cadeia, direto da sacristia).
*Nelson Homem de Mello é jornalista e Diretor Editorial do Grupo RAC