"Em Campinas, a gente tem hoje uma camada de culturas populares mais tradicionais, que são os grupos com mais de 10 anos de existência, recuperando fôlego e buscando essas novas linguagens, e grupos com menos de 10 anos em uma ascensão muito grande, principalmente em regiões periféricas" (Ricardo Lima)
A luta pela preservação das manifestações de cultura popular é também a luta de Alessandra Ribeiro Martins, gestora cultural da Casa de Cultura da Fazenda Roseira e Comunidade Jongo Dito Ribeiro.
Foi o movimento de resgate do jongo, que seu avô Benedito Ribeiro, ou simplesmente, Dito Ribeiro, trouxe para Campinas, que fez com que há 20 anos ela criasse no quintal de casa o grupo batizado especialmente de Comunidade Jongo Dito Ribeiro. Todas as manifestações culturais, sobretudo de matriz africana, estão no radar da mulher que transita na cena cultural campineira e no universo acadêmico, defendendo a necessidade de preservar o passado buscando uma conexão com o presente e o futuro.
Olhando para o todo, ela afirma com convicção que entre os grupos culturais mais antigos há um recomeço com aprendizagem sobre as novas linguagens, e para os grupos mais jovens há uma “espraiação”. "Temos em torno de 40 grupos e comunidades culturais com mais de 30 anos, que estão resistindo, e mais de 50 iniciativas contemporâneas com uma diversidade muito grande e 85% delas nascem da cultura popular, ganham roupagens modernas e se transformam em outras narrativas", pontua.
Direto da Fazenda Roseira, aconteceu uma conversa repleta de repertório e ideais, demonstrando uma disposição indiscutível para mostrar a importância das culturas tradicionais. Por conta da morte da cantora lírica Niza Tank, a seção Para Começo de Conversa circula nesta semana na quarta-feira. Vamos ao bate-papo:
Qual é o cenário que temos hoje em Campinas em relação às manifestações culturais populares?
Com os impactos da covid-19 e ao mesmo tempo com a necessidade de articulação de uma política pública pela ausência do Ministério de Cultura, de modo geral, as manifestações populares ficaram muito vulneráveis. Os recursos para manutenção das atividades eram oriundos dos editais públicos via lei de incentivo ou de atividades culturais onde as manifestações captavam para executar suas ações. Ao mesmo tempo, no caso de Campinas, com o Fundo de Investimentos Culturais de Campinas (FICC), a gente também teve uma outra perspectiva, e talvez pela ausência de trânsito e a dificuldade de estar junto, ocorreu um aprofundamento nas periferias de suas próprias práticas.
Como isso se deu?
Muitos movimentos periféricos estão se autoarticulando na perspectiva da musicalidade, danças e principalmente dessas novas manifestações que dialogam com o mundo digital. Muita gente gravou CD ou usou essas novas linguagens fazendo o trabalho em casa e transmitindo nas redes sociais. O próprio incentivo do Tik Tok faz com que o celular seja uma forma de inclusão. Eu penso que aqui em Campinas a gente tem hoje uma camada de culturas populares mais tradicionais, que são os grupos com mais de 10 anos de existência, recuperando fôlego e buscando essas novas linguagens, e também grupos com menos de 10 anos em uma ascensão muito grande, principalmente em regiões periféricas. São mais juvenis, com recorte mais identitário, se apropriando das linguagens de dança e canto.
Como retratar as comunidades mais tradicionais e o tipo de cultura que elas explanam?
Desde as décadas de 1970 e 1980, Campinas teve um movimento muito grande de inclusão, principalmente pela abertura da Unicamp, especialmente na área das artes. Alguns exemplos são os Grupos Urucungos e Savuru, a Casa de Cultura Aquarela, Casa de Cultura Tainã, Mestre Lumumba e a própria Raquel Trindade, que foi uma personalidade muito forte na cidade que criou grupos. O movimento pelo acolhimento dos funcionários da Unicamp, muitos deles homens e mulheres negros, trouxe umexpressivo traço cultural para somar a outras funções mais formativas da academia. Essa fusão resultou numa explosão de grupos. Todos com mais de 20/30 anos passaram, de alguma forma, por esse experimento da Unicamp. A Comunidade Jongo Dito Ribeiro é um pedacinho desse debate sobre folclore para a cultura popular. Os folcloristas contribuíram para a ênfase da cultura popular, tanto na perspectiva do debate científico, como da manifestação.
Nelas também está o Carnaval?
Nesse grupo também estão as escolas de samba. O que mais cresceu em manifestação popular por aqui foram os blocos que trazem uma juventude. Mas, se olharmos na perspectiva da tradição, os bairros negros e as famílias envolvidas nos carnavais das escolas, há uma perda para a nossa memória. Como diz a Olga Von Simson, Campinas sempre foi uma referência e está sofrendo um afogamento a cada ano.
Existe algum movimento de resgate do trabalho das escolas de samba e dos grupos mais antigos?
Na Secretaria de Cultura, depois que a Alexandra Caprioli assumiu, eu percebo que tem uma sensibilidade para esse debate, mas ainda não existe uma movimentação, até porque essas escolas de samba, o próprio contexto histórico da associação das escolas de samba no cenário campineiro, vem sofrendo uma vulnerabilidade de articulação. Em 2014 ou 2015, houve uma fusão, mas há também a perda dos mais velhos, que são os guardiões dessa memória. Não existe uma política de transmissão de saberes permanente. Minha experiência aqui na Comunidade Jongo Dito Ribeiro, como patrimônio cultural e imaterial, me faz ter a certeza de que é fundamental uma política de transmissão de saberes para nossas culturas e práticas tradicionais. Se isso não for olhado no escopo da estrutura da política, fica muito vulnerável. Ao mesmo tempo, há uma vulnerabilidade enquanto política cultural nacional, que deveria investir e incentivar os jovens a viver de arte. O fato é que a arte ainda não é para o nosso povo que faz a cultura. É um desafio.
Como os grupos interagem?
Os grupos mais antigos sofreram esse impacto no decorrer dos processos e isso se agravou com a pandemia. Aqui no Jongo, que não é um dos grupos mais antigos, pela primeira vez, em 2021, tivemos a experiência de brincar com a nossa linguagem tradicional com outras linguagens, como DJ. Conseguimos fazer esse diálogo contemporâneo porque temos jovens aqui, o que não acontece na maioria dos grupos mais tradicionais da nossa cidade. Os jovens estão nas atléticas, grupos e blocos que vão se organizando, tendo o espaço acadêmico como suporte. Não são os nossos jovens que moram e vivem aqui. A maioria desses grupos contemporâneos que conseguem ter fôlego de diversidade das manifestações, está com o braço na universidade, mas, por outro lado, eu percebo que mesmo com tantos desafios, as periferias têm movimentos que estão explodindo. As festas aos finais de semana, que geram reclamação de som alto, eu vejo como um grito de "olha, nós estamos aqui, vocês nos acolhendo ou não, estamos nos movimentando". Isso tem pulsado em muitas regiões periféricos de Campinas e região.
E como deve ser a retomada dos grupos mais tradicionais?
Eu vejo como um grande desafio porque, querendo ou não, é preciso aprender a usar outras linguagens. Antes, bastava pegar o tambor e tocar. Hoje a gente tem que saber fazer vídeos e postar nas redes sociais, saber mandar mensagem instantânea, temos que estar nesses outros espaços para chegar no público que está ali. Porém, percebo que os grupos tradicionais, por serem mais antigos, também se organizaram no cuidado permanente com os mais velhos. Em nossa comunidade, o mestre Dudu faz 90 anos hoje. Ele não está em todas as apresentações, mas em alguns momentos será possível trazê-lo com segurança e só dele estar aqui já é maravilhoso. Outra questão importante é que na retomada, pela precariedade de uma política nacional, faz com que os grandes e pequenos grupos concorram pelos mesmos lugares. Se antes o Sesc era um local que tinha um recorte muito importante com as culturas tradicionais, hoje ele recebe a proposta de nossos grupos e também de artistas que estão na mesma situação. Os artistas estão tão vulneráveis como as comunidades. A pandemia mexeu com todos os setores culturais, mas ao mesmo tempo provocou um nivelamento.
Como você visualiza o futuro dos grupos tradicionais e dos novos movimentos?
Nesses 20 anos, consolidamos uma rede de praticantes de cultura tradicional. Hoje sentimos falta de aproximar os movimentos tradicionais aos grupos jovens. A gente pode aprender junto as novas ferramentas e ao mesmo tempo todos se fortalecem e saem ganhando. Outras instituições da cidade também estão olhando para isso. Ações conjuntas vão fortalecer o todo. Há muita luta e trabalho pela frente.