CAMPINAS

Entidades se mobilizam para orientar moradores de rua

Série de sete mortes de moradores em situação de rua nos últimos três meses e o consumo elevado de uma mistura apelidada de "doidão", movimentou associações

Gustavo Abdel
18/06/2015 às 05:00.
Atualizado em 28/04/2022 às 15:16
Mistura ingerida pelos moradores é feita à base de álcool combustível, suco em pó e açúcar e que pode agravar o estado de saúde, já debilitado, dessas pessoas ( Janaína Ribeiro/ANN )

Mistura ingerida pelos moradores é feita à base de álcool combustível, suco em pó e açúcar e que pode agravar o estado de saúde, já debilitado, dessas pessoas ( Janaína Ribeiro/ANN )

A série de sete mortes de moradores em situação de rua nos últimos três meses e o consumo elevado de uma mistura apelidada de “doidão”, movimentou entidades ligadas ao tratamento de dependentes químicos, Prefeitura e o Sindicato do Comércio Varejista de Derivados de Petróleo de Campinas e Região (Recap), que vão intensificar suas campanhas para orientar a população de rua e postos de combustíveis sobre os malefícios que essa substância causa no organismo.A mistura ingerida pelos moradores é feita à base de álcool combustível, suco em pó e açúcar e que pode agravar o estado de saúde, já debilitado, dessas pessoas. O Recap informou que a partir desta quinta-feira (18) irá reforçar junto aos postos associados, através de comunicados nos estabelecimentos, as regras impostas pela Agência Nacional do Petróleo (ANP) quanto à venda de combustíveis.A reportagem do Correio revelou na edição de ontem que moradores em situação de rua, principalmente aqueles que frequentam a região central, estão recorrendo ao consumo de álcool combustível misturado com sucos em pó de limão ou abacaxi, que custam centavos a unidade. Essas pessoas têm como principal atrativo o preço do álcool na bomba (o litro custa em média R$ 2,06 em Campinas) e também a potência do álcool 100% puro. Com um litro, segundo moradores ouvidos pela reportagem, é possível preencher dezenas de pequenas garrafas de meio litro — já que fazem a mistura com água para diluir —, e assim abastecer a “maloca”, agrupado onde vivem geralmente entre 5 a 10 moradores de rua.“Eu mesmo já presenciei o consumo de etanol entre os moradores. Eles estavam com um galão de cinco litros, inclusive com o selo do Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro), e colocavam não suco em pó, mas limão em pedaços, e serviam entre eles. É uma verdadeira bomba, e consomem pelo baixo custo, com o argumento nesta época do ano que bebem mais para esquecer o frio”, disse Nelson Hossri, responsável pela Coordenadoria de Prevenção às Drogas, da Secretaria Municipal de Cidadania, Assistência e Inclusão Social. Hossri também relatou que é de conhecimento que uma “pitada” em uma pedra de crack custa R$ 0,50 naquela região do terminal.No próximo dia 25 (quinta-feira), na Praça Quebra Ossos (ao lado do Terminal Central) e no Largo do Rosário, a coordenadoria fará um trabalho de orientação, atendimento e encaminhamento desses moradores de rua, reforçando os malefícios do álcool e demais drogas, inclusive sobre a ingestão de álcool combustível. Vão participar dessa frente — que faz parte da Semana de Prevenção às Drogas — o próprio coordenador, uma assistente social, psicólogas da coordenadoria e um grupo de voluntários também da área de psicologia.Hossri informou que desde que foi lançado, há mais de um ano, já foram realizados 1.828 atendimentos pelo Programa Recomeço, e desses, 144 estavam em situação de rua. “É um número bastante considerável, já que representa um número maior do que os atendidos nos distritos de Sousas, Barão Geraldo, Nova Aparecida e Joaquim Egídio”. Esses moradores são acolhidos no Instituto Padre Haroldo e recebem o Cartão Recomeço — uma política pública de prevenção e tratamento do álcool e outras drogas em comunidades terapêuticas que recebem R$ 1.350,00 mensais por usuário em tratamento. O tratamento dura até seis meses, e alguns casos recebem alta terapêutica antes. Padre HaroldoO coordenador-técnico da comunidade terapêutica masculina e feminina adulta do Instituto Padre Haroldo, Matheus Leite Praça, informou que com a chegada de 144 moradores em situação de rua atendidos pelo Programa Recomeço é um bom momento para buscar informações mais aprofundadas sobre os efeitos que o álcool combustível traz ao organismo desses indivíduos. “Nós abordamos essas pessoas da mesma maneira que abordamos a todos alcoolistas. Não existe uma recorrência (de pessoas que ingerem etanol), mas como recebemos cada vez mais moradores de rua talvez seja uma boa opção para pesquisar sobre o assunto”, disse o coordenador.Dez anos trabalhando com a comunidade terapêutica, Praça disse que esporadicamente ouve relatos de pessoas que consomem não só álcool combustível, mas outras substâncias para aliviar a abstinência.“Há alguns anos passou no instituto um rapaz de São Paulo que de tanto tomar álcool combustível ficou com a visão comprometida. São situações bem pontuais, e no momento não teríamos material para traçar um perfil desse usuário”, explicou.“Vemos isso diariamente (o consumo de álcool combustível), e no período da noite, por volta das 21h”. O relato é de Ivan Luis, um dos diretores do Alcoólicos Anônimos (AA) de Campinas. “Tentamos conversar, mas a maioria deles não aceita ajuda daquilo que o AA pode oferecer. Primeiro precisam ser internados, desintoxicados, e daí sim um trabalho de re-socialização. Eles estão totalmente alheios a realidade ao ingerirem etanol”, avalia. O AA fica na Rua Cônego Cipião, no Centro, um dos pontos onde o consumo de drogas e álcool é mais acentuado na cidade. “Vemos de tudo por ali”, disse. Alerta O Sindicato do Comércio Varejista de Derivados de Petróleo de Campinas e Região (Recap), informou na quarta-feira (17), através da assessoria de imprensa, que tomou conhecimento sobre a venda de combustível para moradores em situação de rua após reportagem do Correio, e que hoje distribuiria circulares, que deverão ser fixadas nos postos associados em Campinas e em mais 89 cidades, reforçando as regras impostas pela a ANP, através da resolução n° 41/13, em vigor desde novembro de 2013.De acordo com a norma, o combustível automotivo deve ser comercializado em vasilhames que tenham sido fabricados para este fim e devidamente certificados pelo Inmetro. Há dois anos e meio o Recap e o Ministério Público (MP) realizaram em Campinas uma campanha de conscientização para que postos não vendessem gasolina à menores de idade.Segundo a assessoria, o sindicato possui 148 postos associados, sendo 24 deles na região central. Nas demais 89 cidades são 762 postos associados.'Luizão'Luis Alves, de 54 anos, conhecido como “Luizão”, está nas ruas desde 1994. A cachaça não nega, mas depois de tomar uns goles de etanol percebeu que aquilo não lhe cairia bem. “É muito forte, mas já tomei e não quero mais”, disse. “Se eu fosse o presidente da República fazia um projeto de lei para acabar com as pingas ruins. Tem muita porcaria sendo vendida e precisa ter mais controle”, enfatizou. Eletricista de alta tensão durante 9 anos na CPFL Paulista, abandonou tudo para viver nas ruas, e, sem família, perambula pela região central. “Ainda bem que não tenho família, pois senão teria que pagar pensão”. Luiz estava às 17h20 de quarta sentando na calçada de uma praça em frente à nova Casa da Cidadania, na Vila Industrial, e sem forças para se levantar, pedia ajuda para que passasse nos arredores para pegar sua blusa caída a três metros de distância. “Já estou sem forças”, finalizou.Sete mortes Nesse ano foram sete mortes de moradores em situação de rua, sendo que a maioria na região central. A última morte foi registrada na segunda-feira, um homem de 61 anos chamado Anfrísio. A Prefeitura informou que não tem os dados de óbitos de moradores de rua de 2014 por que esse levantamento não era feito até então. Somente a partir desse ano o Serviço de Orientação Social (SOS) Rua firmou uma parceria com o Instituto Médico Legal (IML), que comunica a equipe do SOS se houve a morte de moradores nessa situação.

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