GUSTAVO MAZZOLA

Enfim, as esperadas férias

Gustavo Mazzola
igpaulista@rac.com.br
01/04/2015 às 05:00.
Atualizado em 23/04/2022 às 18:40

Já eram passados dois meses, talvez um pouco mais, e Nestor continuava em férias... definitivas: estava aposentado.   Que felicidade! Não precisar mais acordar às 5, tomar o café apressado, vestir a roupa de trabalho, correr para o ponto de ônibus. Agora, podia continuar em casa de pijama, ler o jornal calmamente, fazer as palavras cruzadas. Depois, sair pelas ruas do bairro, sem destino, aproveitando aquele ar puro e leve da manhã.   Ah, essas longas caminhadas, revigorantes, saudáveis. Em geral, ele as fazia bem cedinho, algumas vezes, também, em volta da Lagoa do Taquaral: era quando aproveitava para por em ordem a sua vida, seu dia a dia com o pessoal lá em casa, com a companheira de tantos anos, com os filhos, agora, crescidos, cada um com sua trajetória já definida.   Sua rotina diária não mudava muito: depois da caminhada, um almoço tranquilo, algum tempo em frente à TV, pois, “era a hora das notícias”, e precisava saber como ia o seu mundo lá fora. À tarde, depois da sesta, uma corrida ao banco, quando havia contas para pagar, a compra de algum remédio (sempre tinha algum remédio novo para começar).   Todo dia era a mesma coisa, nada mudava. De repente, começou a sentir que se entediava com aquela vida pacata, sem novidades. Pensou em mudar um pouco: primeiro mudou o trajeto, passou a ir ao Centro da cidade, mas sentia-se como um náufrago numa ilha deserta: não encontrava ninguém conhecido, andava por horas entre aquele movimento, sem se prender a nada. Depois de algumas semanas, mudou novamente, passando a visitar os bairros de Campinas, os mais próximos, depois os mais afastados, lugares que nunca imaginava haver na sua cidade.   Resolveu tentar um cineminha, mas as salas agora não estavam mais no Centro, só nos shoppings, todos longe de seus limites. Assistir a um filme pornô era uma ideia, mas logo a afastou: não fazia o seu gênero, abominava aquelas cenas grotescas, sem uma pitada de romantismo. Um dia, decidiu pegar um ônibus de trajeto regional, e se mandou para uma região bem afastada.   O mesmo problema do Centro da cidade: ainda um náufrago, solitário, desligado do seu mundo, de tudo. E se sentasse nos bancos da praça, e começasse a conversar com aqueles velhinhos “habitués”, o dia todo vagando por ali? Mas isso era demais para o seu orgulho de um recém-aposentado. Foi visitar um amigo, ele havia viajado: “está de repouso em Serra Negra, passou mal esta semana”, dizia a mulher, demonstrando um dedinho de preocupação... com aquela visita intempestiva.   Durante uma dessas caminhadas, lembrou-se de que, naquele final de tarde, após o expediente, seus antigos companheiros de trabalho iam se reunir num barzinho ali por perto, para comemorar o aniversário de um deles. Veio-lhe a ideia de dar uma passada para ver o “pessoal”. Mas, ao chegar, olhando para todos ali ao redor da mesa, tomando o seu chope, sentiu algo estranho.   Havia uma situação diferente da que deixara semanas antes na empresa, após os tradicionais abraços, volte sempre, isso e aquilo. Aqueles seus colegas, amigos, companheiros de tantas e boas, já não eram mais os mesmos. Um abismo os separava.   Eles o olhavam, agora, como uma ilustre presença, digna de toda consideração, atenção... mas aquela química que os unira durante tantos anos não existia mais. A bem da verdade eram outros à sua frente, e ele, não mais merecedor da mais ínfima confidência. Sentiu na pele uma grande mágoa.   Caiu em si de que estava excluído mesmo daquele convívio, das pequenas histórias do dia a dia, de tudo o que lhe assegurava a certeza de que ainda era do “time”. Não tinha mais nada com tudo aquilo ali, com aquela gente.   Começou a bater uma danada nostalgia. E a coisa foi piorando dia após dia, principalmente, quando voltava, à noitinha, para casa: o beijo na mulherzinha, seu lugar no sofá da sala, o jantar quentinho, a novela das nove e depois... cama, que era o melhor mesmo que lhe restava fazer. Foi quando a ficha caiu-lhe de vez: estava afastado do mundo... da sua empresa, dos colegas, dos compromissos, de tudo.   A partir daí, Nestor ainda saía pelas ruas, mas, amargurado. Olhava para aquelas pessoas apressadas com suas pastas e agendas, falando em celulares, todas compenetradas em projetos, metas. E ele: sem planos, sem nada para começar ou concluir. Agora odiava suas férias definitivas.   Não aguentou a nova realidade de vida: morreu no final daquele ano.

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