Maria Helena Guimarães de Castro é presidente do Conselho Nacional de Educação (Divulgação)
A socióloga Maria Helena Guimarães de Castro, professora aposentada de Ciências Políticas da Unicamp, assumiu no início de outubro a presidência do Conselho Nacional de Educação (CNE), cuja responsabilidade é avaliar a política nacional de Educação, zelar pela qualidade do ensino, velar pelo cumprimento da legislação e assegurar a participação da sociedade brasileira nas diretrizes educacionais em âmbito nacional. O desafio do cargo tem uma dimensão tão grande quanto o tamanho do País e seu histórico déficit na área, mas na circunstância da pandemia de coronavírus ele ganha proporção ainda maior. Para a socióloga, no entanto, isso não representa uma situação que a amedronte. Maria Helena foi secretária municipal de Educação de Campinas de 1993 a 1995; já presidiu o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), de 1995 a 2002; foi secretária-executiva do Ministério da Educação (MEC) em 2002, depois novamente entre 2016 e 2018; foi secretária de Educação do Estado de São Paulo em 2007; entre outros cargos públicos. Mais recentemente, a socióloga foi a relatora do parecer sobre como organizar o calendário escolar nesta situação de pandemia, e sobre a volta às aulas, agora regulamentada pela Lei 14.040. “Como presidente do CNE, a nossa missão principal é estabelecer normas, pareceres, diretrizes e notas técnicas sempre no âmbito da legislação existente. O conselho regulamenta aquilo que a lei estabelece desde a Educação Infantil até o Ensino Superior”, descreve. Na avaliação de Maria Helena, vivemos a maior crise que a Educação já enfrentou. “Nem em período de guerra a crise foi tão grave como essa.” Os problemas estruturais podem ser agravados pela pandemia, diz a socióloga, entre eles o índice de 40% de evasão escolar no Ensino Médio. Em entrevista à Metrópole, a presidente do CNE falou sobre o que espera que aconteça nos próximos dois anos de sua gestão e defendeu a volta às aulas em todas as escolas brasileiras. Metrópole - Quais os maiores desafios, do seu ponto de vista, para a política de Educação nacional? Maria Helena Guimarães de Castro - Vejo grandes desafios. O primeiro é concluir a definição de algumas normas para a implantação do novo Ensino Médio. Estamos praticamente na reta final. Faltam alguns temas ligados ao Ensino Técnico e Tecnológico. Isso deverá ser implantado pelos municípios a partir de 2021 (não obrigatoriamente) e 2022 (obrigatoriamente). Outra coisa importante é a questão da formação de professores. Aprovamos recentemente uma nova matriz de formação docente. Isso significa que os cursos de graduação (licenciatura) têm dois anos pra se adaptarem às mudanças propostas nas novas diretrizes. E aprovamos novas diretrizes, mês passado, para a formação continuada dos professores, que é muito importante para a implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), aprovada em 2018. Todos os estados e municípios brasileiros estão implementando, da Educação Infantil até o final do Ensino Fundamental. A senhora acredita que a nova BNCC trará benefícios à educação? Tenho certeza que trará benefícios. Fui coordenadora do Comitê Gestor da BNCC. Ela traz um novo conceito de currículo, por competências, em que o grande objetivo é desenvolver habilidades, atitudes e valores, para que nossos estudantes tenham condições de enfrentar as demandas da vida, tanto do ponto de vista acadêmico quanto do ponto de vista da sua atuação pessoal. A BNCC é referência obrigatória para todos os currículos, estaduais e municipais, e ela é um avanço importante na concepção dos currículos brasileiros. Está alinhada com as propostas mais avançadas do mundo. A BNCC foi inclusive a grande bússola pra orientar estados e municípios para encaminhar as atividades não-presenciais neste ano de pandemia, um ano atípico. Se não fosse a BNCC teria sido muito difícil para o CNE. Vivemos um ano absolutamente atípico, imprevisível. O que está acontecendo no Brasil e no mundo significa a maior crise que a Educação já enfrentou. Nem em período de guerra a crise foi tão grave como essa, então o conselho teve papel muito importante de orientar os estados e municípios nesse processo. Ele estabeleceu os pareceres e diretrizes nacionais para implementação da BNCC que já está sendo implantando em todos os estados, posteriormente estabeleceu as diretrizes de formação inicial e continuada de professores, que já vão começar a ser implantadas a partir de 2021, e em relação ao Ensino Médio iniciamos em 2022. Em relação ao Ensino Superior, o conselho fez um grande trabalho na área das engenharias no sentido de rever suas diretrizes, e estabelecer algumas competências gerais alinhadas às propostas curriculares desenvolvidas em países de alta qualidade na educação. Agora temos desafios para estabelecer as diretrizes para a avaliação da educação básica. Sabemos que o Inep deve rever as matrizes de avaliação do Enem e do Sistema de Avaliação de Educação Básica (Saeb), alinhado à nova BNCC. E para o Ensino Superior estamos iniciando um grande debate de revisão e aperfeiçoamento de avaliação do mesmo no Brasil. Diante desta situação de guerra, quais os problemas estruturais que ficaram mais evidentes na Educação nacional, na sua avaliação? Em primeiro lugar a questão das desigualdades educacionais, que já existiam. No ano passado o IBGE publicou um relatório (Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios – PNAD Educação 2019) sobre educação, que já revelou que de cada dez estudantes, apenas seis concluíam o Ensino Médio. Portanto, 40% dos alunos matriculados não concluíam, isso é um indicador muito preocupante. Com a pandemia, esses indicadores com certeza devem ter se aprofundado. Pesquisa recente da FGV mostrou a diferença do número de horas de aula não presencial por semana, comparando alunos da escola pública com a particular. As desigualdades estruturais já existiam, e com a pandemia tivemos uma dificuldade maior. Primeiro porque nem escolas particulares nem públicas podiam imaginar o que vinha por aí. Todas tiveram que se reinventar de um dia pro outro. E os professores foram absolutamente incríveis, verdadeiros heróis, por terem conseguido em pouco tempo colocar uma série de atividades não presenciais, ou on-line, off-line, pela televisão, por rádio, e vão continuar a fazer isso. O CNE estabeleceu que até o final de 2021 as escolas vão continuar a oferecer atividades presenciais e não presenciais. Ou seja, o único modo dos alunos darem conta de todos os objetivos de aprendizagem vai ser por meio de uma mistura, um contínuo curricular 2020/2021 para que as escolas possam ampliar o turno escolar, contemplando os alunos com atividades presenciais e não presenciais, sempre com mediação pedagógica, para que até o final de 2021 consigam concluir. O CNE recomenda também evitar a reprovação, porque nossos alunos já foram muito prejudicados este ano, se não nós corremos o risco de ter um aumento absurdo de evasão que já é alta. Tudo em torno destas discussões tem sido bastante polêmico. Há demandas e insatisfações dos professores, dos estudantes e dos pais. Nenhuma dessas decisões recentes a respeito da situação de pandemia tem sido muito consensual. A que a senhora atribui? O que eu acredito é que existe uma grande insegurança na sociedade brasileira, a respeito da pandemia. Por alguma razão há uma falta de confiança das famílias na capacidade das escolas em retomar as aulas. Tem um estudo mostrando que a volta às aulas pode provocar no máximo 15% de aumento de contaminação. Enquanto o não retorno às aulas vai aumentar no mínimo em 40% a evasão escolar. O governo francês anuncia novo lockdown mantendo as escolas abertas. Alemanha também. Então, essa situação no Brasil de insegurança das famílias, de medo, ela precisa ser esclarecida. Está faltando boa estratégia de comunicação com a sociedade, explicando todos os cuidados que estão sendo tomados. A senhora acha que as escolas devem voltar gradativamente? Eu acho que já deveriam ter voltado. Porque por exemplo tudo depende da situação da pandemia. Uma vez que as autoridades sanitárias definiram que os índices estavam caindo, que o número de casos estava diminuindo e que era possível voltar, a partir daí, desde setembro, em São Paulo, nós já temos uma posição das autoridades sanitárias que já permitem o retorno às aulas. O governo do estado permitiu o retorno às aulas, mas muitas escolas não quiseram voltar, muitas famílias não aceitaram e muitos municípios não reabriram. Eu acredito que em grande medida uma parte dessa dificuldade se relaciona à falta de confiança das famílias, ao medo, à falta de informação, a uma estratégia de comunicação que é insuficiente. Mas e as famílias que quiserem manter essa postura? Não tem como forçá-las. Mas à medida que os outros forem voltando às aulas e as famílias perceberem que as coisas estão se normalizando, gradativamente elas vão voltar também. O que acho é que tem uma questão política também por trás da volta às aulas. Numa certa medida isso está relacionado ao processo eleitoral, alguns prefeitos evitaram o retorno, preocupados, com medo de aumento de casos, e isso poderia interferir no processo eleitoral e local. Há uma série de fatores, e o fato da desinformação. Não adianta esperar a vacina. Todos os países que voltaram às aulas voltaram sem vacina, e as coisas estão funcionando de modo próximo da normalidade. Alemanha, Austrália, Finlândia são países com excelente desempenho no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) e estão tomando decisões parecidas com estas que o governo de São Paulo está propondo, além dos governos do Paraná, Rio Grande do Sul, Goiás, Ceará, Pernambuco, vários estados. Ceará começou a voltar às aulas desde agosto e não teve aumento no número de casos. Por conta das diferenças estruturais da Educação do Brasil em relação a estes países, a senhora acredita que se daria da mesma forma este retorno aqui, com a mesma segurança? A senhora acha que serão cumpridos os protocolos? Primeiro de tudo é o seguinte: a escola tem de cumprir o protocolo. Se a escola não tiver condições de cumprir, a rede pública não tiver condições de cumprir, não tem como abrir a volta às aulas. Isso é uma premissa básica. Vai ter uma fiscalização sobre isso? Tem de ter. Mas é uma fiscalização municipal e estadual. Não é o governo federal que vai fazer isso. A maioria das escolas particulares já se preparou para voltar às aulas, ainda assim muitos pais de alunos das escolas particulares resistem. Mas você olha alunos do Ensino Médio, de 12 a 15 anos, que têm total condição de seguir o protocolo sanitário, desde que a escola garanta máscara, distanciamento social, gradualismo no retorno, menos alunos por turma, cuidados nos lavatórios e nos banheiros. Se as autoridades sanitárias e governamentais autorizarem, e as escolas cumprirem os protocolos, o que seria desejável é que voltassem às aulas. Eu acredito que isso é fundamental porque senão vamos perder uma geração inteira, a geração Covid do ponto de vista educacional vai ficar muito prejudicada. O que pode acontecer na Educação brasileira pós-pandemia? É muito difícil saber o que vai acontecer na Educação com a volta às aulas no pós-pandemia, mas tenho muita clareza sobre o crescimento do ensino híbrido, que são atividades dentro da própria escola com uso de tecnologias para complementar as presenciais. O grande problema é o acesso à internet por todas as escolas brasileiras, pois muitas escolas públicas não têm acesso à internet. Temos alunos muito vulneráveis. Alguns têm acesso à internet, mas é o celular da família. Ele precisa ter o instrumento dele pra acompanhar, seguir uma plataforma. O governo federal deveria mobilizar recursos e parcerias pra garantir acesso à internet a todas as escolas públicas do Brasil e para garantir pacote de dados gratuitos pra todos os alunos muito vulneráveis, para que eles possam seguir o ensino híbrido. A senhora tem dois anos pela frente uma série de desafios. Acredita que a educação no Brasil ainda vai chegar a um ponto que seja pelo menos satisfatório no âmbito geral? Eu espero que sim, sempre trabalhei pra isso. Acredito que esse ano é um ano fora da curva, e portanto nós teremos uma perda. Unesco e OCDE estão esperando queda no desempenho dos alunos. No mundo inteiro, mas espero que essa recuperação aconteça, que as escolas se organizem, ofereçam recuperação para os alunos, que sejam feitas novas parcerias. O terceiro setor está muito ativo, prestando grande apoio às escolas públicas no Brasil inteiro. A formação do professor é essencial, formação continuada, porque por trás de cada boa tecnologia nós temos um professor incrível que faz com que essa tecnologia realmente seja boa para o aprendizado dos alunos. Então eu acredito que sim (vamos chegar), e espero estar viva até lá.