CECÍLIO ELIAS NETTO

Elegância e leão cordial

Cecílio Elias Netto
01/05/2015 às 05:00.
Atualizado em 23/04/2022 às 15:09
ig-cecílio (AAN)

ig-cecílio (AAN)

Pensei em escrever tendo, como tema, o Dia do Trabalho. O pensamento, no entanto, fixava-se-me em vereadores, deputados, senadores, políticos. Desanimei. E não consegui evitar a lembrança da nova versão da formiguinha e da cigarra, atualíssima, pedagógica. Pela narrativa renovada, a cigarra — depois de, por anos sem conto, perturbar a formiguinha pedindo-lhe abrigo no Inverno — voltou-lhe a bater à porta. Era outro inverno. A formiguinha atendeu. Ao ver a amiga aventureira, assustou-se: a cigarra estava vestida de vison, o motorista a aguardava numa limusine, falou: “Querida formiga, vim me despedir e agradecer. Estou indo a Paris, onde vou morar com o meu amante”. A formiguinha, sem se humilhar, fez-lhe um pedido: “Cigarra, minha amiga. Se, em Paris, você encontrar aquele tal de La Fontaine, faça-me o favor: mande-o à p...que o pariu”. Na verdade, porém, inquietavam-me outros sinais. Acredito neles, sem ser supersticioso. Se o fosse, estaria preocupado pois, nestes últimos dias, tenho muito pensado em Thiago de Mello. E reencontro coisas que dele escrevi, o deslumbramento que me apanhou ao conhecê-lo. Ora, ainda insisto em afirmar: fosse, eu, menos soberbo, estaria andando de joelhos. Pois sinto-me brindado com privilégios demais na vida, da vida. Até nas dores. Entre eles, houve epifanias, ainda há. E, se existem, uma delas — a inesquecível, a indelével — foi a de estar com Thiago de Mello, o poeta. Vi o santo e o guerreiro, o leão e o cordeiro. Thiago de Mello residia, então, em Itatiba, após o longo exílio. E honrou-me em dar-me uma entrevista cá para o Correio Popular. Sabe, a transfiguração no Monte Tabor? Aconteceu comigo, aconteceu para mim. Eu vi a transfiguração de um homem, a sua absoluta nudez de alma, a luz que lhe emanava dos olhos, que lhe saía dos poros. Thiago de Mello era um feixe de luz. Naquele dia, lembrei-me da luz e da mariposa, imagem que se usa para tentar entender o místico Juan de La Cruz, São João da Cruz. Para explicar e entender o que era a luz, uma mariposa aproximou-se da vela, voou ao redor, não teve muito o que contar. Outra, aproximou-se mais, queimou as asas, quase se cegou. A terceira mergulhou na luz, queimou-se, extinguiu-se. A rainha das mariposas explicou: “Agora, ela entendeu: tornou-se luz”. Thiago de Mello, quando o conheci, já era luz. Tinha-se extinguido, transudava paz, parecia flutuar. Ele se vestia todo de branco, como o homem de seu Estatuto do Homem. Acho que ainda se veste. Ou que se veste ainda mais de branco, quando a velhice lhe chegou, abençoando-o em seu retiro à beira do Amazonas. As paredes da sala, onde me recebeu, eram como que feitas de livros. E, no entanto, tudo era leve. E, para conversarmos, ele convidou Mozart como anfitrião, a música de Mozart embalando o lugar de Thiago viver. Foram, no primeiro encontro,três horas de conversa. E mais três, no segundo. E, depois, dias e dias e dias, como se eu tivesse penetrado num mosteiro e não mais conseguisse sair de lá. Não posso esquecer-me, pois foi choque de epifania: da primeira vez, ao sair do encontro com Thiago de Mello, eu não sabia onde estava, em que rua, em que lugar, em que cidade. Foi tal o impacto que me fraquejaram as pernas , senti tudo escurecer, como um desmaio, um dor intensa no estômago, vomitei. E chorei. E eram tantas as lágrimas que eu não sabia dirigir ao longo da estrada, nem para onde ir. Quando cheguei à redação, o Wilson Marini — então, editor — apressou-se em atender-me. A minha palidez o assustara. Eu me convertera, era uma conversão. Thiago de Mello fora, ele próprio, o convite de conversão a um ideal de beleza, à elegância, à delicadeza da vida, a uma lição reverencial de ser, de render graças, de descobrir maravilhas. Não me acanho de confessar: depois de conhecer Thiago de Mello, tive vergonha de mim. Senti-me pedra bruta. Vi-me com máscaras demais. E com teias de aranha no coração. Em Thiago, vi a possibilidade concreta, palpável, real de o homem estar em harmonia com tudo. Dele, vertia, em gotas, uma ética fascinante, a ética da estética. Em Thiago de Mello, o belo comungava com o bom. Emociono-me ao lembrar disso ao rever, ainda agora, espalhando-se pela internet, uma mensagem que pretende contagiar pessoas, apaziguar os tempos, serenar os ambientes. São, ainda e novamente, palavras de Thiago de Mello, convidando-nos a experimentar a maneira generosa de viver, a do comportamento elegante. Elegância de viver é a arte da cordialidade, diz e propõe Thiago. Na verdade, é um segredo: com elegância, até o leão é cordial.

Assuntos Relacionados
Compartilhar
Correio Popular© Copyright 2025Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por