Professora usa notícias para trabalhar conteúdos com classes de internos da Fundação Casa
Professora, História, Aula, Fundação Casa ( Edu Fortes/ AAN)
O adolescente Paulo, que ainda nem completou 16 anos, não pode ter seu nome divulgado, motivo pelo qual o que está escrito no RG dele não aparecerá por aqui. Tampouco ele pode mostrar seu rosto para a fotografia desta página. Há um ano e meio, pelas infrações que cometeu cidade afora, é interno na Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Fundação Casa) Andorinhas, no Jardim San Martin. Assim, “detrás das grades”, como ele se refere à situação, fica de olho na chegada da professora Eliane de Camargo Magalhães Pagliarini, que caminha carregando uma sacola pelos corredores. Para ele, o encontro com a educadora é a única maneira de manter algum contato com o mundo fora do internato. Eliane é a professora de história e, na sacola, estão jornais e revistas que ela mesma compra para usar em suas aulas. Por opção, desde o ano passado, ela abandonou as classes em colégios públicos tradicionais para experimentar a docência em salas destinadas a adolescentes infratores em processo de reeducação e a mulheres presas na Penitenciária Feminina de Campinas, no Jardim São Bernardo. “Me sinto muito mais motivada a trabalhar. Acredito que o interesse seja maior porque o contato com o professor e com o conteúdo que eu levo para a sala de aula representa um elo com o mundo do qual eles estão privados”, diz. Enquanto está em casa, Eliane recorta jornais e revistas, procurando reportagens e artigos que possam ser usados para fazer a relação entre o passado e o presente. Se o conteúdo prevê abordar a questão indígena, por que não levar para a sala de aula uma notícia sobre a demarcação de terras? Se, noutro momento, a escravidão do negro é a temática, por que não aproveitar aquela reportagem sobre a diferença salarial entre negros e brancos que saiu no jornal de anteontem? É assim que ela planeja suas aulas. Diálogo Paulo não só se interessa pelas notícias que a professora leva como também as aproveita para ter o que conversar com os pais, que podem visitá-lo aos finais de semana. Há pouco tempo, por exemplo, quando a mãe entrou, ele logo perguntou se ela já tinha o cartão do Bilhete Único, pois Campinas deixaria de ter dinheiro circulando nos ônibus urbanos. “Se não fosse pelo jornal, que assunto eu teria?”, pondera o garoto. Percebendo que o uso dos jornais era positivo, Eliane decidiu expandir o projeto e criar um meio de comunicação em que os alunos também pudessem se expressar. Mensalmente, com dinheiro do próprio bolso, ela imprime um jornal-mural que reúne produções dos alunos. Cada um pode dizer livremente o que sente: uma letra de música, uma poesia, um texto, uma frase, um desenho. Com isso, ela também conseguiu uma atividade interdisciplinar, que envolve os professores de artes e de língua portuguesa. Para exercitar a democracia, valor que ela ressalta em suas aulas cujo tema é política, os alunos escolheram o nome do jornal. Com 98% de participação, todos votaram, de forma secreta, e a escolha foi por Realidade Atrás das Grades. Depois, vieram as aulas em que ela explicou que, assim como ocorre na imprensa, é preciso fazer a edição do material e escolher como privilegiar informações, de acordo com critérios de importância, propósito e ideologia.AutoestimaAlém de elevar a autoestima dos alunos, que veem sua produção estampada na parede de um dos corredores da Fundação Casa, o veículo também se transformou numa forma de os demais funcionários conhecerem os internos e até uma maneira de recados para os quais faltava a coragem. Foi assim que, no mural, estava escrito há poucos meses: “Dá uma vontade de chorar ao ver minha família aqui vindo me visitar. Fé em Deus e nas crianças da favela. Desculpa, mãe, por te impedir de sorrir...”.Semanalmente, além do Realidade Atrás das Grades, Eliane e os alunos organizam outro mural, dessa vez com recortes de textos publicados em jornais e revistas. “Eu percebo que, além do conteúdo que trabalho regularmente a partir do que está previsto no plano de ensino, esse contato com os textos dos jornais possibilita que os alunos saibam o que está acontecendo no mundo e não fiquem distantes da realidade que a família está vivenciando”, explica a educadora. Antes dos textos serem levados para a sala de aula, eles são avaliados pela coordenação pedagógica da Fundação Casa e alguns são excluídos: para mostrar o outro lado da vida, nada de levar para a classe mais violência do que aquela que os alunos já vivenciaram ou ajudaram a cometer do lado de cá. O projeto que Eliane desenvolve na Fundação Casa Andorinhas começou a ser constituído no ano passado, quando ela lecionou em outros dois endereços também destinado a adolescentes infratores, a Fundação Casa Carlos Gomes e a Fundação Casa Campinas, também localizados no Jardim San Martin. O próximo passo agora é criar um jornal-mural com as mulheres da Penitência Feminina do São Bernardo, onde ela leciona numa sala de Educação de Jovens e Adultos (EJA). “Já uso muito o jornal com as detentas. Para elas, também é uma forma de manter contato com o mundo e até mesmo de entretenimento”, diz Eliane já sabendo que, ao chegar, a página sobre novelas e horóscopo será a mais disputada.