EDU ALMEIDA

É quando/ onde ainda

EDU ALMEIDA
02/05/2013 às 05:00.
Atualizado em 25/04/2022 às 18:00

Algo cresce na fenda do concreto. Em meio à rigidez árida da certeza brota uma forma de resistência. Forma frágil. Ela discorda do entorno, sente que não se enquadra. Cresce assim, sem saber por quê; sem objetivos definidos, o sentido da sua existência surgirá no/do processo, ao longo dos embates, tanto das boas experiências quanto das ruins. Sempre uma nova hipótese brota entre as milhares que abandonamos pelo caminho.O que cresce ali, afinal? Não se sabe dizer, não há nada igual ao redor, apenas semelhanças e diferenças. Não há sinônimo. Comparação indefinida/inexata. Invenção. Não é exatamente nada, está deslocado do eixo pressuposto. Mas ainda assim é alguma coisa. Um ser. Não se pode negá-lo, não se consegue ignorá-lo. Ele incomoda/provoca. Mesmo quieto, inquieta. Estranhamente familiar. Por quê?Uma das sensações mais angustiantes de se colocar entre territórios emparedados, estruturas estabelecidas e rótulos é a falta de chão. Viver na fenda, na heterotopia, quase sem apoio, sempre ameaçado pela altura do penhasco e a gravidade da queda. Estar sem pertencer. Não ser um exímio isso ou aquilo, o especialista mais especializado, a precisão mais precisa, a referência. Beber do múltiplo o seu desejo de completude. Ser um pouco de cada coisa e um monte de nada. Oscilar entre a ilusão e a desilusão por tudo aquilo que poderia ter sido. Assumir a indefinição como possibilidade de vida. O inacabamento. O caminho sem fim. O universo.Parece fácil. Vão dizer que tudo pode, que é covardia, que o difícil é conviver com as restrições. Mas no lugar da cobrança exterior surge uma enorme exigência própria. É de fato mais difícil, convoca um olhar desautomatizado, atenção redobrada. Procurar a sombra onde a maioria se encanta com a luz, onde o excesso cega e ludibria. Caminhar por um piso que não se reconhece, sempre um novo passo no desconhecido. Deixar-se afetar e criar a partir das afetações. É bem mais sincero assim.Transitar entre mapas. Transpassá-los. Saltitar aqui e ali, habitar e mudar, procurar sem saber o quê. Manter o compromisso com o projeto, seja ele nítido ou não; permitir que se transforme ao seu bel-prazer. É o que resta. Perceber as fronteiras como ligações, locais de troca e passagem; interlocuções ao invés de limites/barreiras. Vizinhança. Estar no meio é, na realidade, estar conectado a tudo/todos. Almejar a liberdade, buscá-la, mesmo que ela desapareça ao toque mais sutil, mesmo que evapore quando se tenta agarrá-la.É diferente de ficar em cima do muro. Estar no “entre” é um posicionamento político, o limiar entre a vida e a arte. Não se encaixar, não se enquadrar, não se encaixotar, não se enquadradar. Existir num lugar inexistente. Onde ainda. Posicionar-se na fenda entre os partidos é diferente de não tomar qualquer partido. Livre de dualismos, dogmas, maniqueísmos. Livre da verdade/mentira, certeza/fé, certo/errado, é/não é, realidade/ficção, consciência/inconsciência, corpo/mente, permissão/proibição, meu/seu, individual/público, bem/mal...Viver o outro como si mesmo. Superar os condicionamentos a que estamos acostumados, recusar a ideia de “normal”, como se o normal existisse absolutamente. Posicionar-se num outro plano é, ainda assim, compreender que existe relação; o pertencimento surge da exclusão, o reconhecimento se dá pela diferença. Tudo condiz, convive, coincide. A questão é aceitar, acolher, positivar.Reconhecer a ambiguidade. Experimentá-la. Vê-la acontecer por aí. Perceber que tudo tem de assim e assado, um pouco de cada; valorizar isso, aprender a lidar com as emoções sem precisar traduzi-las verbalmente. Nem sempre a palavra dá conta da emoção de lidar.Viver a multiplicidade dos sentidos, os significados que atravessam as coisas e as resignificam. As transformações constantes, sempre necessárias. As diferentes camadas de significado implicadas na mesma coisa. A poética da obra aberta, a vida como ser vivo, cada dia com um humor. Assumir a imprecisão. Do tempo, das narrativas, dos eixos, das categorias, dos métodos. O esgotamento impossível. Retirar tudo das gavetas e mandar pelos ares. Jogar, brincar. Demolir a pretensão de verdade e não erigir memorial no lugar, não eleger substituto. Ver a roda girar como fizeram Marcel Duchamp e John Lennon, enquanto os loucos tentam provar sua razão, justificar a existência com importâncias. Os loucos com quem convivemos cotidianamente; deixá-los para lá. Inventar com as sombras projetadas nas paredes, divertir-se com a maleabilidade delas.Quando o sabor da carne ainda não foi estragado pela salmoura do dia a dia; é quando ainda se choca, é quando ainda se revolta, é quando ainda — poetizou Paulo Leminski. É onde ainda. Sim. Sonhar acordado. Viver a fantasia da realidade; o real de estrutura ficcional. Manifestar-se. Narrar a própria história nas entrelinhas. Mas não é exatamente disso que se trata.Obs.: Este texto jamais seria escrito sem as conversas com a amiga Renata Monteiro Buelau e sem o grupo de pesquisa que se reúne, sob orientação da profa. Dra. Eliane Dias de Castro, no Laboratório de Estudos e Pesquisa Arte, Corpo e Terapia Ocupacional (FM/USP).

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