ZEZA AMARAL

E assim caminha a cidade

Aos poucos vou me desvencilhando da pegajosa lama que escorre da boca dos politicalhos

Zeza Amaral
10/08/2016 às 22:25.
Atualizado em 22/04/2022 às 23:40

Aos poucos, raro leitor, vou me desvencilhando da pegajosa lama que escorre da boca dos politicalhos. Já é possível andar pelas ruas e debruçar em esquinas para ver o vai e vem dos homens e mulheres na cidade, cada um com suas elegâncias particulares, a maioria em trajes que demonstram muito uso, mas bem cuidados, todos na boa moda do conforto e da serventia. A primeira fornada (ou seria fritada?) de pastel de queijo do japonês que tem um bar ao lado dos Correios e Telégrafos, acabou. O queijo é mineiro, meia cura, e a massa é bem parecida com a que a minha mãe fazia, não muito crocante e nem borrachuda. O recheio é generoso: o queijo se derrete todo sem soltar aquele soro que molha os dedos e suja a camisa. É o único lugar que conheço que vende pastel de queijo mineiro. Desço a Glicério com água na boca e vou pensando em tomar um café no Bar do Português, na Galeria Trabulsi. Tudo ali continua como antes, o piso hidráulico, as duas barbearias, a casa de chapéus, a loja de tecidos, o alfaiate, a casa de prótese, o salão de manicure só para senhoras e moçoilas, a casa lotérica, a lojinha de sapatos e a papelaria. Só a Rádio Brasil não está mais lá, com o seu bonito e confortável auditório que aplaudia os grandes cantores e cantoras do País, divulgando seus discos de setenta e oito rotações. Cícero Lanaro, excelente locutor, também não está mais lá. E a cidade me abraça à tarde e eu sigo com ela, namorando, quase limpo da lama da politicalha... Coisa de uns sessenta anos atrás, a maria-fumaça subia a ladeira dos trilhos, apitando, lá na porteira que separava o Taquaral do bairro do Furazoio, resfolegando uns tantos vagões de passageiros e cargas. Os trilhos passavam a poucos quinze metros do muro da minha casa. E a coisa mais bonita era quando a maria-fumaça passava, à noite, suspirando suas fagulhas, milhares de vaga-lumes se queimando na escuridão. Fizemos um campinho de futebol num terreno inclinado da Rua Ari Barroso. Quem ergueu residência naquele terreno não sabe do matagal que os meninos do Taquaral derrubamos, dos espinhos de joa arrancados e dos muitos gols que foram marcados entre dois pedaços de tijolos; isso tudo antes da grande Copa Mundial de 58. Naquele tempo, nenhum moleque tinha ídolo. A bola era a nossa grande paixão. Ela só parava quando, de repente, a maria-fumaça apitava na porteira do Furazoio, avisando que ela vinha chegando, coisa de segurança. Segurança coisa nenhuma! Pelo barulho nervoso, pesado, a gente já sabia que ela vinha lenta. E os doidos moleques abandonavam a peleja e assim descíamos uma pequena barranqueira até os trilhos do trem. E o robusto trem nos convidava para um passeio - e cada um se agarrava como podia num vagão. E assim íamos até a Estação do Guanabara. Na volta ao campinho, seguindo a pé pela linha do trem, cada um contava uma história de grande coragem. Foi por um daqueles dias que, pela primeira vez, entrei num estádio de futebol. Eu estava bestando pela barbearia do seu Luizinho quando um amigo do meu pai, quase vizinho de quarteirão, me convidou para ver um treino da Ponte Preta. E pelas mãos do lendário zagueiro Bruninho passei pelos monumentais portões do Moisés Lucarelli. E ali nasceu um amor que até hoje carrego pela Ponte Preta. E reescrevo esta história. Nunca me importei com as derrotas, pois, desde menino, aprendi que elas existem. E o mesmo sei que vale também às vitórias. E bom mesmo, até hoje, é ver o esquadrão pontepretano entrar em campo e, de repente, ouvir o trem apitando no barranco. São outros trilhos, um outro trem, bem sei. Mas eu não ligo: a Nega Veia é a mesma namorada de sempre. Feliz aniversário, Ponte Preta! Bom dia.  

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