ABANDONO

Drama noturno de quem vive nas ruas de Campinas

Moradores de rua atravessam madrugadas em pânico, temendo morrer pela violência ou pelo vício. Campinas registrou 9 mortes de moradores em três meses

Gustavo Abdel
21/06/2015 às 07:00.
Atualizado em 28/04/2022 às 15:29
Para se proteger do frio, além de beber pinga, eles dormem encostados para se aquecerem durante a noite ( Carlos Sousa Ramos / AAN)

Para se proteger do frio, além de beber pinga, eles dormem encostados para se aquecerem durante a noite ( Carlos Sousa Ramos / AAN)

Longa, silenciosa e imprevisível. A madrugada revela ao morador em situação de rua a face mais temível de se viver no isolamento, mesmo que muitas vezes por vontades assumidas. As horas demoram a passar com o frio, e para muitos o jeito é sobreviver para o vício e aguardar a morte, que chega a passos largos quando perdem o controle do consumo de drogas e álcool e ficam expostos a uma sociedade que na maioria das vezes os recriminam. A morte, inclusive, chegou cedo a nove deles nessas condições, em Campinas, desde o começo do ano. O Correio foi acompanhar, entre a madrugada e manhã de sexta-feira, como essa população está exposta a todo tipo de violência social, ouvindo tristes relatos de gente que até quer sair dessa condição, mas estão presas principalmente aos vícios.A vontade de voltar a trabalhar, por exemplo, não falta ao morador Jair de Oliveira, de 74 anos. Há três anos nas ruas de Campinas, fez do seu dormitório diário o calçadão da Rua 13 de Maio. A fumaça do crack foi o desjejum na manhã de sexta-feira, e Jair descreve com tanta clareza sobre a droga que por um momento até acredita-se que não a usa. “A pedra de crack é efêmera, pois a cada cinco minutos de prazer ela nos tira R$ 10,00. Nós achamos que ela nos faz companhia, mas é um engano, porque quando o efeito passa a crise é pior ainda”. Ex-eletricista das empresas IBM, Clark e Bosch, disse que trabalhou até os 68 anos, e depois que a esposa sofreu acidente de carro e ficou viúvo, caiu em depressão e foi para as ruas. Um filho mora em Guarulhos, e o outro tem um escritório de contabilidade na Avenida Orosimbo Maia. “Vejo meu filho sempre. Ele vem ao Centro e pergunta se quero sair das ruas, mas não é a hora. Tenho vontade de começar um trabalho de novo, mas vamos ver”, diz. Sobre o medo de viver nas ruas, Jair lembrou de um período em que batiam em moradores, e três pessoas morreram em 2011, na região central, com pauladas na cabeça.Próximo ao Jair, o recepcionista Samuel Santos Pereira, de 20 anos, chegou de Guarulhos faz nove dias, e encontrou no calçadão da 13 de Maio o lugar para ganhar uns trocados depositados em uma caixa de sapato. “Minha mãe não me quer mais em casa, e estou rodando faz dois anos. Vim parar em Campinas e estou dormindo na rua”, contou. Segundo ele, não usa álcool ou droga, pois, como sua paixão é cantar, essas substâncias poderiam atrapalhar o desempenho. O desejo é ser reconhecido e deixar a sarjeta. A reportagem percorreu as ruas da região central, como Dr. Costa Aguiar, 13 de Maio e Glicério, e também nas “malocas” (agrupados de moradores) no Botafogo e Vila Industrial, e contabilizou aproximadamente 80 moradores dormindo embaixo de marquises, nas calçadas e sempre em grandes grupos, como forma de proteção entre eles. “Mas o álcool mata um pouquinho a cada minuto. A gente estando junto ou não. Mas também se não beber, como suportar?”, argumentou Marcos Rocha, de 41 anos, que às 6h20, esperava os primeiros centavos dos trabalhadores que entravam e saíam apressados do Terminal Metropolitano Prefeito Magalhães Teixeira, na Rua Dr. Ricardo. Ele dorme no mesmo local onde morreu há uma semana Marcelo Bueno de Lima, de 42 anos, conhecido como “Barbinha”, de causas naturais, preliminarmente. “Ele me pediu água porque estava se sentindo mal. Bebia demais. E depois de beber, dormiu e não acordou mais”, contou o colega. “Não tenho nada para comer”, reclamava o morador, que é natural de Pederneiras e está nas ruas de Campinas há um mês. “Tem R$ 3,00 para me arrumar, para comprar um ‘corote’?” , pediu ao repórter. “A noite foi muito gelada, mas dormimos um ao lado do outro e assim esquenta um pouco”.Ao lado de Marcos, Paulo Dias, de 42 anos, há cinco nas ruas da região, passava muito mal naquela manhã. A cada gole na pequena garrafa de pinga, virava para o lado e vomitava. “Já passou, já passou”, disse, quando perguntado se passava bem. Segundo ele, não tem problema de saúde, mas admite que o álcool já está lhe fazendo mal. “Perdi muitos amigos já. Outro dia foi o Cotonete (Anfrísio Pereira da Silva, de 61 anos, morreu dia 15 deste mês) e quem será o próximo?”, questiona, olhando para o vazio.Um tempo atrás seu coquetel principal era álcool combustível com suco em pó, “com muito açúcar”. Mas segundo ele, por sorte, o posto que lhe fornecida gratuitamente fechou. “Eu chegava lá e me davam de graça. Um posto lá no Centro, perto de uma loja grande”, disse, sem saber especificar ao certo o local. “Tomei muito, e hoje fico só na cachaça”, conta.Pão com pingaPróximo do terminal, na rua do Albergue Municipal, paralela à Avenida Governador Pedro de Toledo, no Botafogo, a “maloca” daquela região despertava às 7h. Pão seco e gole de pinga animava José Roberto Marcos da Silva, de 42 anos. “A pinga faz mal de manhã, mas bebo desde os 11 anos e estou aqui, olha”, disse, fazendo gestos com os braços indicando força. Mas por causa da pinga, entrou em coma profundo, e quase morreu recentemente. Na roda dos 10 moradores, ainda permeava o medo de terminar como o colega Anfrísio, que morreu após fortes dores abdominais.Na quinta-feira, o assassinato de um morador de rua nas proximidades da rodoviária assustou o pessoal da área do Albergue, que até a manhã do dia seguinte não sabia da notícia. “Eu tenho medo de ficar na rua, mas não me aceitam mais em casa porque disseram que eu vou matar a minha família. Eu não vou matar ninguém. Eu só preciso que eles deem mais uma chance”, disse D.M.L, de 50 anos, que preferiu não falar o nome.“Esta noite roubaram o celular de uma amiga nossa, com todos os contatos da família dela. Tem que haver respeito entre a gente, porque a gente já não tem mais respeito de ninguém”, disse Benedito Donizette Fortunato, de 36 anos.

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