ABANDONO

Drama de porteiro aposentado mobiliza condomínio

Chocados, moradores de prédio em que Mário Martini trabalhou lembram de sua cordialidade

Fábio Gallacci
gallacci@rac.com.br
10/05/2013 às 23:45.
Atualizado em 25/04/2022 às 16:39

Mário Martini recebe comida e o carinho de irmã Antônia Cacilda dos Santos (Elcio Alves/AAN)

A placa de agradecimento pelos anos de bons serviços prestados fixada no salão de festas do Conjunto Residencial Jardim Europa, no Jardim São Bento, em Campinas, não deixa dúvidas de que a pessoa homenageada é muito querida por todos no local. O nome em destaque é o do porteiro aposentado Mário Martini, de 92 anos, que esta semana virou notícia por ser vítima de abandono e maus-tratos dentro da própria casa, na Vila Industrial.

Os moradores que batizaram o espaço de lazer com o nome do funcionário que atuou por 24 anos ali ficaram chocados quando viram o estado do idoso em reportagem no iG Paulista: muito magro, sujo, sem as roupas de baixo e perambulando sob o sol em um quintal. “Não teve quem não chorasse ao ler a reportagem. Seo Mário não é uma pessoa qualquer, ele tem uma história e o respeito de todos aqui”, afirmou uma moradora.

A ação da Prefeitura fez com que, na última quinta-feira (9), Martini deixasse sua casa e fosse encaminhado para um abrigo, onde já recebe atendimento especializado. A novidade foi comemorada por todos no condomínio. Mesmo assim, o grupo se mobilizou para ajudar o antigo amigo no que ele precisar. Hoje, parte dos moradores fará uma visita ao aposentado no abrigo. Na mala, muitas roupas, bolachas e o carinho que ele sempre dedicou aos outros.

O idoso trabalhou no edifício até dezembro de 2010 e se aposentou. Segundo vizinhos, ele sempre tinha uma brincadeira, uma piada ou uma gentileza pronta para agradar. Nas horas vagas, ensinava a criançada a aprender a tabuada.

Raphaela Ribeiro chegou ao residencial com 6 anos e cresceu vendo Martini trabalhar na portaria. Enquanto ainda estava cursando jornalismo, ela e alguns colegas de faculdade produziram uma reportagem com o aposentado sobre idosos que se mantêm ativos. Martini foi um dos personagens principais do trabalho. “Ele era uma pessoa sempre disposta, sabia o nome de todos os moradores, entregava todas as correspondências corretamente. Amava o que fazia. A reportagem sobre o estado de abandono dele foi um choque. Chorei muito quando li. Fiquei abismada. O seo Mário é um ser humano, digno de respeito e dignidade”, disse Raphaela.

Os mais antigos também sentiram pelo amigo. “Sou moradora do condomínio há 30 anos e conheço o seo Mário desde o dia em que ele entrou aqui. Ele nunca faltou no serviço, um profissional exemplar. Todo mundo gosta dele. A situação que vimos no jornal nos feriu demais”, afirmou a moradora Darci Grigolon Comar.

Um grupo grande se reuniu na tarde da última quinta-feira no salão Mário Martini para comentar o assunto, mostrar indignação, mas, acima de tudo, solidariedade. Antes de saber que o aposentado seria amparado pela Prefeitura e levado para um abrigo particular adequado, os moradores se mostraram dispostos até a acionar coletivamente a Justiça para que algo fosse feito para a proteção do idoso. Mesmo aposentado, Martini costumava visitar o conjunto de prédios para rever os conhecidos.

“Uma coisa que me entristeceu na reportagem foi quando disseram que ele estava xingando os outros (em casa). Lembro que todas as vezes que a gente abria a porta para ele entregar uma carta sempre tinha uma piada ou uma historinha para contar. Lembro também do chapéu, que ele falava que o Indiana Jones tinha dado para ele. É o mesmo chapéu que aparece na foto da reportagem. Mas, alguém falando palavrão... Esse não é ele”, disse o também morador Renato Ribeiro.

Amparo

A síndica Eunice Ângela Sahyoun reforçou o interesse de todos em amparar o ex-funcionário, que nunca virou ex-amigo. “Antes da mobilização, houve a indignação. Uma pessoa que conviveu com a gente por 24 anos não é um qualquer. A indignação maior é o destrato que ele passou. O que pudermos fazer para ajudar, nós vamos fazer. Eu sei que qualquer morador aqui quer isso também”, disse.

“Todo mundo aqui paparicava ele. Seo Mário sempre tinha esse bom humor. Por mais cansado que estivesse, sempre tinha uma cortesia com todo mundo. Esse abandono é inadmissível para qualquer pessoa. Mas, agora, o seo Mário, não dá. Não dá para deixá-lo nessa situação. Essa é uma forma de retribuir tudo o que ele já fez por nós”, afirmou a síndica.

Pagamento

Eunice aproveitou também para esclarecer uma polêmica. A filha do idoso, Leonor Maria Martini, de 41 anos, afirmara à reportagem que o pai não havia recebido nada de seus direitos trabalhistas. “Não pagaram nada para ele. Ele não tem nada guardado, coitadinho. Ele sempre foi muito bom para os outros e nunca falou nada. Foi mandado embora por causa da idade, não fizeram nada por ele”, acusou a filha. Nesta sexta, porém, a síndica do condomínio apresentou um documento de formalização de rescisão de contrato do idoso, assinado por Martini em 17 de dezembro de 2010. O papel ainda tem o carimbo e a rúbrica do representante do Sindicato dos Trabalhadores de Edifícios e Condomínios de Campinas e Região. Eunice informou à reportagem o valor exato pago pelos anos de serviço prestado, incluindo os centavos. O valor não será revelado em respeito ao sigilo bancário do idoso. 

Questionada sobre o documento apresentado pelo condomínio, Leonor afirmou que o pai havia recebido, na verdade, “apenas R$ 5 mil” e que o dinheiro já foi gasto com o aluguel da casa da família e outras despesas, como medicamentos. Ela garantiu também ter um documento que comprova o pagamento da quantia mencionada. Perguntada se poderia mostrar o papel, a filha disse que o documento estaria com a mãe dela, dona Sara, de 74 anos, mulher de Martini. “Eu mostro a vocês”, insistiu.

O depósito foi feito em uma conta bancária aberta em nome de Leonor. Ela disse que o pai estava ao seu lado quando isso aconteceu e garantiu nunca ter usado parte do dinheiro para interesses próprios. “De jeito nenhum. O dinheiro foi todo para a mão da minha mãe e usado para pagar o aluguel da casa, as contas, as compras. Minha mãe teve artrose e ficou de cama. Gastou dinheiro para comprar remédios, para o tratamento”, justificou.

Nova casa

Banho, barba feita, roupas e sapatos novos. O primeiro dia do porteiro aposentado Mário Martini, de 92 anos, na Associação Franciscana de Assistência Social Coração de Maria (Afascom), entidade conveniada à Prefeitura no Jardim Von Zuben, onde ele ficará por tempo indeterminado, foi de adaptação e atenção total. Mesmo recém-chegado, o idoso mostrou satisfação em estar ali. Comeu bem, conversou, aceitou fazer a higiene, disse que era palmeirense e ainda quis saber os nomes de todos os outros idosos que estão abrigados com ele. Na tarde de ontem, voltou para o Centro de Referência do Idoso (CRI), da Secretaria de Saúde, para novos exames e para a troca do curativo no braço esquerdo, feito no dia em que o seu estado de abandono foi revelado. Contudo, até o final da tarde de ontem, ninguém da família havia procurado por ele.

“Seo Mário é uma criatura maravilhosa, muito inteligente e lúcido. Uma pessoa do bem. Está se adaptando rapidamente e se mostrou super integrado com as demais pessoas daqui”, disse a irmã Antônia Cacilda dos Santos, assistente social da Afascom e coordenadora do abrigo da Instituição de Longa Permanência da entidade. Ela está pessoalmente cuidando para que todo o atendimento seja o melhor possível para o aposentado. Inclusive, acompanhando ao lado do idoso os seus atendimentos médicos. “Dou a minha palavra de que nós daremos a ele toda a atenção e cuidados necessários. Ele vai ter tudo o que um ser humano precisa e merece para manter a sua dignidade”, acrescentou.

Chapéu

Antônia só comentou que Martini tem sentido falta de seu chapéu, um companheiro de longa data que acabou se perdendo nos tumultuados últimos dias. Uma touca tem sido usada por ele, mas não é a mesma coisa. “Ele pede muito pelo chapéu. Se alguém puder dar um para ele, seria muito bem-vindo”, disse a irmã.

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