RODRIGO DE MORAES

Do oco do tempo

Rodrigo de Moraes
rodrigo@rac.com.br
10/04/2013 às 05:00.
Atualizado em 25/04/2022 às 21:09

Uma voz que vem do oco do tempo, a da Clementina de Jesus. Ouvi essa definição em um documentário sobre as raízes da música brasileira, que passou há alguns anos na TV paga. Foi dita não lembro por quem, mas nunca mais me esqueci dela. “Oco do tempo” para mim ficou sendo um lugar metafísico, entre o tempo e o espaço, onde está acumulada toda a experiência humana.No caso de Clementina, considerada o elo entre o canto escravo e o samba, sua voz de metal, bruta como chão de terra batida, arrasta consigo não só séculos de resignação e sofrimento, mas também de resiliência e, por que não?, alegria de viver. Celebra a permanência do homem diante da morte, o triunfo da memória sobre o esquecimento.Há um exemplo superlativo de preservação da obra humana em A Alma de um Homem (The Soul of a Man), documentário de Wim Wenders que integra a série The Blues, produzida por Martin Scorsese. Wenders conta a história do bluesman “Blind” Willie Johnson, um músico cego, cuja canção Dark is The Night (“Escura é a noite”) foi enviada ao espaço em discos colocados a bordo de duas sondas do programa Voyager, da Nasa, lançadas em 1977 e atualmente navegando para além dos confins do Sistema Solar. O destino dessas naves ou até quando elas explorarão o espaço profundo é uma incógnita, assim como se desconhece se, um dia, outras inteligências encontrarão as sondas e reconhecerão nelas a expressão de uma civilização remota.De qualquer forma, há quem diga que o propósito dos discos — que também contêm gravações de nomes como Beethoven, Stravinsky e Chuck Berry — não é nem tanto o de serem ouvidos por supostos extraterrestres. É mais o de servir como uma afirmação da própria vida na Terra, algo que assinala para nós mesmos a nossa presença no universo.Em outro episódio de The Blues dirigido pelo próprio Scorsese, o cineasta vai até as plantações de algodão no Mississipi para investigar as raízes do gênero. Encontra um estilo de música tocado com tambor e uma flauta primitiva, com sonoridade semelhante à de um pífano. E encontra algo que remete ao tal “oco do tempo”: o tambor e a flauta, tocados respectivamente por um senhor negro e uma menina que não lembro ser sua filha ou neta, são herança das formações marciais da Guerra de Secessão (1861-1865). Scorsese vai ainda mais longe — em ambos sentidos — e retraça as origens da música americana até o Mali, na África, o continente que é, em muitos sentidos, é a origem de tudo.Me foge o nome do pesquisador americano, também mencionado em The Blues, que empreendeu viagem por todo o território estadunidense no esforço de registrar as raízes da música americana antes que muitas delas, transmitidas por tradição oral, se perdessem para sempre. No Brasil, trabalho semelhante foi realizado pelo publicitário Marcus Pereira, que nos anos 70 fundou uma gravadora com seu nome e realizou mapeamento inédito da música regional brasileira com a série de discos Música Brasileira do...(Nordeste, Centro-Oeste etc). É um inventário monumental, composto de frevos, cirandas, sambas de roda, jongos, pontos de macumba, ladainhas, benditos, mazurcas, polquinhas de galpão, cantos de pescadores, de lenhadores e diversas outras manifestações que traduzem o Brasil profundo, intacto em suas origens, encapsulado no tempo como os discos que agora viajam pelo espaço a bordo das Voyager, rumo a sei lá que confins do universo.

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