RODRIGO DE MORAES

Diariamente

Rodrigo de Moraes
rodrigo@rac.com.br
28/08/2013 às 05:02.
Atualizado em 25/04/2022 às 04:04

ig - Rodrigo Moraes (CEDOC)

Tenho um primo, Gilberto, que viveu durante três, quatro décadas com um alemão (ou austríaco, não sei ao certo), herdeiro, ao que parece, de uma longa linhagem de nobres ou aristocratas. Nunca fomos muito próximos, apesar de Gilberto — que eu, quando criança, chamava de tio por conta de nossa diferença de idade — e o parceiro terem frequentado regularmente a casa de meus pais na década de 80. Voltamos a nos encontrar, meu primo e eu, semana passada: seu companheiro de longa data morreu após anos de uma doença excruciante. Ainda devastado pela perda (“Eu estou péssimo”, respondeu, sem rodeios, quando lhe perguntei como estavam as coisas), ele veio para Campinas passar alguns dias na casa de meu pai, seu primo-irmão (a quem se referiu, com um senso de humor que o luto não anulou, como “anfitrião de terceira categoria”, na intenção de enfatizar justamente o contrário: meu pai é um exemplo de pessoa atenciosa e gentil). Fomos, nós três, a uma dessas choperias chiques da cidade. Não se falou em mortos. Gilberto, que granjeou respeito em São Paulo como arquiteto e pianista erudito, tratou, com a autoridade de quem levou muito a sério a própria educação — que se deu entre o Rio, Brasília e Berlim —, de uma variedade de temas: da música sacra à reforma protestante, da varíola de Elisabete I ao rompimento de Henrique VIII com Roma. Ouvi com atenção e interesse: não é todo dia que sentamos à mesa do bar com alguém cuja bagagem — uma somatória de experiências de vida, leitura e estudos — equivale à de um respeitado catedrático. E havia um contraste interessante entre a conversa, que tratava de reis e rainhas, papas, compositores e orquestras, e a prosaica partida de futebol exibida nas TVs de plasma afixadas nas paredes do local... Não se falou, como disse, em mortos. No entanto, meu primo deixou entrever, em suas lembranças sobre um certo apartamento em Milão de cuja reforma ele se encarregou, contratado por um executivo da Pirelli e sua bela amante, ou sobre seus conhecimentos de italiano e alemão adquiridos em aulas e viagens, o quanto ele sentia saudades do passado e, por extensão, da vida ao lado de seu companheiro. Duas coisas que ele disse, ao deixarmos o local poucas horas depois, me fizeram pensar o quanto a linguagem é reveladora. No caso dele, demonstrava, talvez sem ele perceber, o tamanho da ausência de seu parceiro, do rombo que ficou em seu dia a dia após décadas de convivência a dois. Primeiro, junto ao portão da choperia, uma motocicleta antiga com sidecar fazia as vezes de decoração, provavelmente em uma tentativa de reafirmar o caráter “tradicional” do estabelecimento. “Sabe como se chama isso em alemão?”, perguntou meu primo, apontando para o pitoresco carrinho de uma roda anexo à moto. “Beiwagen”, ele mesmo se prontificou em responder. Que significativo, pensei depois, ele se referir àquele veículo híbrido — a moto e o sidecar —, feito idealmente para levar duas pessoas. Talvez, lá no fundo da mente, Gilberto tenha se imaginado no comando da máquina, com o companheiro confortavelmente instalado no “beiwagen”, enquanto percorriam, às gargalhadas, uma estrada imaginária por entre campos de trigo dourado e bosques verdejantes. E, por último, ao falar sobre as diferenças regionais de pronúncia do idioma alemão, elegeu como exemplo uma palavra ainda mais significativa: täglich, que significa “diariamente”. Diariamente, ao longo de três, quatro décadas, Gilberto teve a companhia de seu amado; diariamente, ao longo de anos, meu primo se desdobrou em cuidados para com o companheiro gravemente enfermo. Agora, diariamente, ele acorda sem ninguém ao seu lado e se depara com a casa vazia. Diariamente. E irrecorrivelmente.

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