ANDRÉ FERNANDES

Diária/mente (m)

André Fernandes
igpaulista@rac.com.br
07/05/2013 às 18:24.
Atualizado em 25/04/2022 às 17:17

O homem tende para a verdade como um corpo físico para seu centro de gravidade. A história da civilização é a história da procura da verdade: a verdade religiosa, filosófica, antropológica e científica. Nesse último campo, investem-se milhões e milhões e anos e anos de pesquisa para resgatar, de nossa ignorância, os resquícios da radiação cósmica de fundo dos primeiros segundos do “big bang” ou a decifração do genoma humano. É uma verdadeira paixão humana pela verdade. Em qualquer campo do saber.Mas a atitude pós-moderna ante a verdade, em suma, pode ser resumida na célebre pergunta de Pilatos: “O que é a verdade?”. Qualquer um que afirma estar a serviço da verdade, nos dias atuais, com sua vida, palavra ou ação deve estar disposto a ser comparado a Quixote, o cavaleiro da triste figura, porque “um mundo mais além está cerrado à nossa visão”. Esta frase de Fausto, de Goethe, caracteriza bem o atual senso comum a respeito do tema.Contudo, se uma atitude cética em relação à verdade, muitas vezes, é perfeitamente compreensível, o que não se sustenta é a entronização da mentira na cátedra da verdade, sobretudo no campo social. Recentemente, acompanhamos o episódio do mensalão, no qual o veredito final evidenciou a verdade dos fatos. Mas, por muito tempo, tentou-se vender a ideia de que teria sido um singelo caso de “recurso financeiro não contabilizado”, sem maiores reflexos na esfera penal, já que “se tratava de um costume supra-partidário”...Essa crise partidária, que reflete a crise de nossas instituições, é, no fundo, uma crise de caráter. Ou melhor, de falta de caráter. Sabe-se da importância do espírito conciliatório ao longo da história política brasileira. Com o tempo, o que foi um eficaz expediente para tornar possível a construção de nossa sociedade, tornou-se uma espécie de vício, de segunda natureza. Passamos a tirar proveito da exposição de expectativa, “subindo no muro” e esperando que os fatos se definam por si mesmos. Sem qualquer compromisso prévio com uma verdade objetiva, mas com a verdade a ser “construída” a partir dos mesmos fatos. Ou seja, uma “verdade” subjetiva.A simulação foi canonizada, de maneira que nenhuma atitude pode ser tida como autêntica. Não se abraça sinceramente nenhum princípio, com o que, depois de alguns anos, deixa de haver princípios. Críticas são feitas. Às vezes, virulentas, porque, há muito, as palavras não mais obrigam quem as profere. Mil pessoas assinam um manifesto qualquer, mas apenas cinquenta dispõem-se a levar a proposta até as últimas consequências.Nesse caldo cultural, o sal e a pimenta são justamente o atraente lado cordial de nosso temperamento. Entretanto, condimentado demais, esse caldo perde seu sabor e entorna, mais cedo ou mais tarde. “Sem um mínimo de caráter não se fazem sociedades duradouras”, afirmação atribuída ao mártir de nossa independência. E ele pagou bem caro para defendê-la...A crítica não vem só da prosa. A poesia já deu sua contribuição: “Mentiram-me. Mentiram-me ontem e hoje mentem novamente. Mentem de corpo e alma, completamente. E mentem de maneira tão pungente que acho que mentem sinceramente. Mentem, sobretudo, impune/mente. Não mentem tristes. Alegre/mente mentem. Mentem tão nacional/mente que acham mentindo história afora vão enganar a morte eterna/mente. Mentem. Mentem e calam. Mas suas frases falam. E desfilam de tal modo nuas que mesmo um cego pode ver a verdade em trapos pelas ruas. Mentem deslavada/mente, como nenhuma lavadeira mente ao ver a nódoa sobre o linho, mentem com a cara limpa e nas mãos o sangue quente, mentem ardente/mente como um doente nos seus instantes de febre, mentem fabulosa/mente como o caçador que quer passar gato por lebre. E nessa trilha de mentira, a caça é que caça o caçador com a armadilha. E de tanto mentir tão brava/mente, constroem um país de mentira — diária/mente“ (Affonso Romano de Sant’Anna).Quando falta a transparência na palavra e na conduta, não só uma pessoa fica dividida contra si mesma, como a própria vida social transforma-se num grande baile de máscaras. O desinteresse pela verdade é o primeiro passo rumo à decadência de qualquer sociedade. Se não desejamos isso, fica aqui a sugestão: amar a verdade — diariamente. Com respeito à divergência, é o que penso.

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