Continuo a transcrever trechos que anotei entre 1982 e 1986, sobre minhas conversas com J., meu amigo e mestre na Tradição de RAM. Lembro que o provoquei, citando uma escritura budista que discorre sobre as seis dificuldades de se viver numa casa: dá trabalho construí-la, dá mais trabalho ainda pagá-la, deve ser consertada sempre, pode ser confiscada pelo governo, vive recebendo visitas e hóspedes indesejados, serve de esconderijo para atos condenáveis. Segundo o mesmo texto budista, há seis vantagens de morar sob uma ponte: pode ser encontrada facilmente, o rio nos mostra como a vida é passageira, não nos dá a sensação de cobiça, não precisa de cerca, sempre passa alguém novo para conversar, não é preciso pagar aluguel. Conclui dizendo que era uma bela filosofia, mas que pelo menos, em meu país, quando vemos as pessoas morando debaixo de pontes e viadutos, temos certeza que este texto está errado. J. respondeu: - “O texto é bonito, mas dentro de nosso contexto está realmente errado. Entretanto, isso não deve servir para alimentar nossa culpa. Nos sentimos culpados por tudo que há de autêntico em nós; por nosso salário, nossas opiniões, nossas experiências, nossos desejos ocultos, nossa maneira de falar - nos sentimos culpados até mesmo por nossos pais e nossos irmãos.” - E qual o resultado? Paralisia. Ficamos com vergonha de fazer qualquer coisa diferente do que os outros estão esperando. Não expomos nossas idéias, não pedimos ajuda. Justificamos isto, dizendo: “Jesus sofreu, e o sofrimento é necessário “. “Jesus atravessou muitas situações de sofrimento, mas jamais procurou permanecer nelas. Não se pode ocultar a covardia com desculpas deste tipo, senão o mundo inteiro não segue adiante. Por isso, se ver alguém debaixo de um viaduto, vá ajudá-lo, porque ele é parte do seu mundo.“ - E o que fazer para mudar isso? “Tenha fé. Acredite que é possível, e começará a mudar toda a realidade ao seu redor.” - Ninguém pode dar conta desta tarefa sozinho. Vejo que a maioria das pessoas não tem fé suficiente. “ Às vezes criticamos a falta de fé dos outros. Não somos capazes de entender as circunstâncias em que esta fé foi perdida, nem procuramos aliviar a miséria de nosso irmão - que gera a revolta e a incredulidade no poder divino.” “O humanista Robert Owen percorria o interior da Inglaterra, falando de Deus. No século 19, era comum usar a mão de obra infantil em trabalhos pesados, e Owen parou certa tarde em uma mina de carvão - onde um garoto de doze anos, subnutrido, carregava um pesado saco de minérios.” “Estou aqui para ajudá-lo a falar com Deus”, disse Owen. “Muito obrigado, mas não o conheço. Ele deve trabalhar em outra mina”, foi a resposta do garoto. Como querer que um menino, nestas condições, pudesse acreditar em Deus?” - Eu devolvo a pergunta? Como fazer com que isso pudesse ser possível? “Além da fé, tenha paciência. Entenda que não está sozinho, quando deseja que a Justiça Celeste também se manifeste nesta terra. Na Idade Média, as catedrais góticas eram construídas por várias gerações. Este esforço prolongado ajudava seus participantes a organizar o pensamento, agradecer, e sonhar. Hoje o romantismo acabou; entretanto, o desejo de construir permanece em muitos corações, é apenas uma questão de estar aberto para encontrar-se com as pessoas certas.” (Continua na próxima semana)