PASQUALE CIPRO NETO

'Depois de um ano, caso eu não venha...'

Pasquale CIpro Neto
24/04/2015 às 05:00.
Atualizado em 23/04/2022 às 15:39

No último dia 1º (sim, 1º de abril), “comemorou-se” o quinquagésimo primeiro aniversário de uma das maiores tragédias da história do Brasil, o golpe de 64, que mergulhou o país no breu da ignorância, intrínseca a qualquer ditadura (qualquer: a do Brasil, a de Cuba, a da União Soviética, a de Portugal, a da Espanha, a da Venezuela etc., etc., etc.). Motivado pelas atrocidades cometidas pelo regime militar, o grande Chico Buarque escreveu “Acorda, Amor”, uma de suas tantas antológicas canções (“Acorda, amor / Eu tive um pesadelo agora / Sonhei que tinha gente lá fora / Batendo no portão, que aflição / Era a dura, numa muito escura viatura / Minha nossa santa criatura / Chame, chame, chame lá / Chame, chame o ladrão, chame o ladrão”). Pois bem. Que relação tem esse 1º de abril (sim, foi em 1º de abril, e não em 31 de março) com a canção “Acorda, Amor” e com o nosso assunto de sempre, a nossa língua portuguesa? O golpe de 64 e a ditadura militar que a ele se seguiu já fazem parte das aulas de história do Brasil; dessas aulas (e das de língua e literatura) fazem parte muitos textos que retratam esse período. Nos “Parâmetros Curriculares Nacionais”, instituídos pelo Ministério da Educação, registra-se a obrigação (da escola, dos professores) de formar e informar, de trabalhar com a inter e a multidisciplinaridade, o que exige, por exemplo, a análise de letras como a de “Acorda, Amor” nas aulas de português e/ou de história. Os versos transcritos no segundo parágrafo deste texto são os que iniciam a genial “Acorda, Amor”, cuja autoria “oficial” é de Leonel Paiva e Julinho da Adelaide, que, na verdade, são pseudônimos que Chico Buarque usou em 1974 para driblar a tosca e burra censura da ditadura militar. Com essa inteligente letra, Chico “enrolou” e “embrulhou” muito bem os então donos da cocada preta. Com o fino emprego da ironia (e do “salvo-conduto” obtido com os pseudônimos), Chico inverte a ordem natural das coisas ao pedir à mulher que “chame o ladrão, chame o ladrão”. O jogo é claro: o normal é que se chame a polícia quando surge o ladrão; na letra de Chico, surge a polícia (a “muito escura viatura”, que representa os agentes da ditadura) e chama-se o ladrão, mais confiável do que o aparelho do Estado (se me permite a maldade, caro leitor, avançamos muito pouco ou quase nesse território, não?). Numa outra parte da letra dessa canção (certamente a parte mais pungente), encontramos estes versos: “Se eu demorar uns meses, convém, às vezes, você sofrer / Mas depois de um ano eu não vindo / Ponha a roupa de domingo e pode me esquecer”. Foi esse o amargo destino de muitos brasileiros, o de sumir, ou melhor, de “ser sumido”. Intencionalmente ambígua, a “roupa de domingo” simboliza a ida à igreja (para rezar pela alma do “suicidado”) e o pôr-se bela para o encontro ou para a procura de um novo amor (“e pode me esquecer”). Convém dar o devido destaque à forma verbal “vindo”, do gerúndio do verbo “vir”, empregada em “Depois de um ano eu não vindo...”. O trecho “eu não vindo” equivale a “se eu não vier” ou “caso eu não venha” (“Depois de um ano, se eu não vier, ponha a roupa de domingo...” ou “Depois de um ano, caso eu não venha, ponha a roupa de domingo...”). Convém lembrar também que o verbo “vir” e os seus derivados (“intervir”, “convir”, “desavir”, entre outros) são os únicos que têm gerúndio e particípio iguais. Em “Vindo aqui, procure-nos”, a forma “vindo” é do gerúndio; em “Se você tivesse vindo aqui ontem, teria falado com ela”, a forma “vindo” é do particípio. Voltando à letra da canção de Chico Buarque, não resisto à tentação de dizer que um dos seus grandes méritos é o de não dizer explicitamente, escancaradamente. Esse mérito está em dar a entender por meio de imagens, genialmente criadas. Exercícios de imaginação (que às vezes devem ser aliados ao conhecimento da nossa história) não fazem mal a ninguém. Até domingo. Um forte abraço.

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