carolina scoz

Dentro

Carolina Scoz
22/11/2018 às 19:11.
Atualizado em 05/04/2022 às 20:23

Acredito que você realmente quisesse comentar a última crônica que publiquei. Enfatizou que é uma leitora fiel. Citou textos escritos há bastante tempo, alguns já esquecidos nas gavetas desordenadas da minha própria memória. Você diz que a comoveram - sim, é certo, ou não se lembraria. Estariam perdidos, feito poeira suspensa no ar. Pode ser que um feixe de luz revele suas partículas. Pode ser que repouse discretamente sobre um móvel. O fato é que a poeira escapa de nós, nem tentamos agarrá-la. Assim também são as coisas de rasa importância. Sem o impacto da emoção – seja alegre ou aflitiva – a mente não preserva. Sua mensagem era grande demais para uma leitora intencionada a elogiar. Os muitos parágrafos anunciavam que você explicaria algo - mas, o quê? “Vivi uma história que ninguém conheceu. Se eu pudesse escrever, não guardaria somente comigo. Agora que tenho 82 anos, preciso contar antes.” Antes de quê? Antes de confundir, antes de emudecer, antes de hesitar, antes de morrer? Antes que os acontecimentos íntimos, esses que têm valor, desapareçam para sempre junto ao corpo desfeito? (É mesmo uma fantasia narcísica do escritor: garantir que suas ideias sobrevivam à morte física. Tornar-se presente, quando já não estiver. Não está iludido ao fazer isso: é fato que humanizamos obras literárias: “Adoro Drummond.” “Levei Clarice no avião.” “Quintana ajuda nas horas difíceis.” Transformamos autores em companhias vivas. Não importa que tenham morrido: suas palavras continuam reverberando dentro de nós. Podem ir, mas ficarão.) Imaginar o fim absoluto – é disso que tem medo, leitora?  Deixar que morram com você as memórias dessa paixão inconfessável, forçada ao segredo quando, por dentro, pulsava insubmissa à realidade, esperando um futuro mais generoso? Um futuro de mil possibilidades, longos cafés da manhã na varanda, quase emendados aos almoços, caminhadas sem rumo pelas ruas sombreadas, leituras intermináveis compartilhadas nas noites insones. A casa dentro do jardim, cercada por um silêncio perfumado que afastou todos os ruídos mecânicos e somente acolheu o sussurrar do vento, a fervura nas panelas, a boa música e a conversa divagante - que nada objetiva exceto falar àquela única pessoa que não cansa de ouvir. Finalmente não esconderiam. Não seria imoral e ofensivo se tocassem as mãos; nunca mais sentiriam culpa quando pensassem um no outro inúmeras vezes ao dia, insensatamente. Por exemplo diante de um mapa, um livro, um quadro, um envelope - um objeto qualquer mas, para esses amantes clandestinos, um lembrete inevitável capaz de reconectar dois indivíduos separados por centenas de quilômetros. “Guardei aqui dentro de mim. Achariam que sou louca se eu falasse uma coisa dessas!”. Não será loucura o contrário, leitora: a resignação à uma existência sem imaginação, sem desejo, sem sonho? Jorge Luis Borges, escritor argentino, talvez gostasse de ler sua carta. Diz ele: “Como pude não perceber que a eternidade é um artifício esplêndido que nos liberta, nem que seja fugazmente, da intolerável opressão do sucessivo?” Você não suportou viver sob a “opressão do sucessivo”. Seu olhar alcançou uma vida extraordinária, lá adiante, num tempo mítico. Se entendi, reencontraram-se poucas vezes. Você fez sua família aqui; ele a fez longe. Trocaram cartas, não sei quantas, talvez muitas já que você fala de uma “relação epistolar”. Abriram mão do romance explícito, sob uma dor crônica e calada, é verdade, mas vejo que algo resistiu. Dentro de você houve a varanda cercada de jardim, e as alamedas coloridas de ipês, e as histórias sem fim. Dentro de você argumentos cansaram de discutir, certezas desistiram de gritar - você apenas o admirava, sem nada dizer. Dentro de você poemas e canções ecoaram, dias e noites. Ele a instigou, advertiu, consolou, encorajou. Ele a convidou para dançar, ele a colocou para dormir. Bastava fechar os olhos para, num instante, refazer o abraço impossível, e entrelaçar as pernas distantes, e beijar o rosto adorado que fervilhava de medo e êxtase. Décadas de solidão acompanhada: veja a transgressão que cometeram; ele lá, você aqui. Por isso você não envelheceu, nem envelhecerá. (Não te parece uma grande sorte?)

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