ANDRÉ FERNANDES

Demônios e infidelidades

André Fernandes
11/09/2013 às 05:00.
Atualizado em 25/04/2022 às 02:49
IG-ANDRE FERNANDES (CEDOC)

IG-ANDRE FERNANDES (CEDOC)

Outro dia desses, realizava uma audiência de instrução em matéria familiar, com a finalidade de se reconhecer a existência de união estável entre a convivente sobrevivente e o convivente falecido, representado pelos filhos naquele processo. Tenho sempre receio de audiências sobre mortos: costumam dar trabalho para mim como se fossem vivos. E trazer algumas surpresas. Nem sempre agradáveis. Foi o caso concreto. A suposta convivente teve que ouvir, das testemunhas, as ex-namoradas do morto, todas ao mesmo tempo e sem que uma soubesse da outra — e a convivente, de todas — as inúmeras diatribes do defunto e suas peripécias sentimentais. E, é claro, todos os curiosos expedientes para manter a constância e a rotatividade de suas relações amorosas. O ritmo da audiência foi marcado pelo choro inconsolado da última namorada, que se considerava a fiel e exclusiva convivente do morto. Ao final, ouvi o filho mais velho do defunto e ele relatou, na condição de confidente do genitor, que o falecido gostava de viver sob “fortes emoções”. Na iminência da morte, disse que seu pai não vivia mais da emoção, mas da angústia. Talvez, concluo, porque tenha resolvido dar mais espaço à sua consciência moral, que o colocou no banco dos réus do “processo” histórico e retrospectivo de sua vida. Terminada a audiência, minha introspecção voltou-se para as infidelidades múltiplas do defunto. O homem infiel é um homem que sofre. Sinto uma certa hostilidade feminina no ar. Explico. Sem dúvida, as principais vítimas do homem infiel são a mulher e os filhos produzidos aleatoriamente. Mas também, de certa forma, o dito cujo, porque busca, ainda que indiretamente, seu sofrimento, por meio de uma existência pautada pela constante posse de um novo rabo-de-saia. A infidelidade é desgastante para qualquer macho de nossa espécie: a idade avança e o físico já não suporta uma maratona de relações sexuais num intervalo de poucos dias, sem que haja o mais leve indício de que o homem infiel esteja no meio de sua maratona particular. E a alegação de cansaço não vale, porque pode gerar despedida por justa causa... Há, também, o desgaste financeiro. O homem infiel é, por excelência, um homem de vários orçamentos: são dois ou três jantares por semana, dois ou três anéis pelos aniversários ao longo do ano e duas ou três viagens por temporada. Nesse caso, se todos os destinos forem o Mediterrâneo, o sujeito quebra mesmo. Como não há recuperação judicial para pessoa física, a falência vira dois ou três processos de alimentos ou de reconhecimento de união estável, que serão julgados por dois ou três juízes. E, assim, entro na história desse homem infiel de duas ou três mulheres. E o desgaste mental? O esforço perene para nunca confundir os nomes das mulheres e elaborar planos para que elas nunca se cruzem umas com as outras. O homem infiel nunca vive a paz interior, essa tranquilidade na ordem de todas as coisas. O homem infiel não anda com várias agendas, mas ele mesmo é uma agenda ambulante: um dia não é um dia, mas uma estratégia de guerra, com horários fixos, porém alteráveis ao menor risco de confusão das agendas individuais de cada mulher. O homem infiel não sabe o que é compromisso, salvo o fiel compromisso com suas emoções. O homem infiel, para se justificar frente aos inevitáveis desencontros, produz e reproduz mentiras oralmente. Não as registra ou mesmo as escreve, porque ele funciona como os antigos rapsodos gregos, que perambulavam de cidade em cidade recitando, de cor e salteado, as epopeias de Homero. Assim, sem risco de lapsos de memória, ele, coerente com suas inverdades até a insanidade, não cai em contradições. Quando vivemos sob “fortes emoções”, tudo começa como uma excitação. Então sucedem os erros e tudo termina como uma frustração. O homem infiel é um homem que vive cercado pelos demônios que ele mesmo cria. Seus relacionamentos amorosos não são um hobby ou uma distração: são um casulo existencial. Nesse casulo, o tecido é formado por uma trama de infinitas linhas de sentimentos, conhecida como sentimentalismo, o qual, por sua vez, imobiliza qualquer tentativa da razão em educar os afetos que, sem prumo, acabam por guiar sua vontade, insaciável por novas infidelidades. Pequenas e grandes. De fato, o homem infiel é um homem infiel também a si mesmo. Com respeito à divergência, é o que penso.

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