Livro conta a história de jovem que fala três idiomas com a ajuda de leitura labial e apresenta problemas que qualquer um pode ter
Não perceber que a campainha está tocando ou que alguém fala com você, nem entender a letra de uma música por não conseguir ouvi-la. Essas situações são comuns para pessoas que não têm a audição e esperadas também na terceira idade, quando o sentido diminui naturalmente. Estudos recentes, porém, mostram que a exposição ao ruído ocorrida ao longo da vida leva à surdez bem mais do que a própria idade.
Receber o diagnóstico de deficiência auditiva é difícil em qualquer fase, até quando já se desconfia que ela existe. Foi o que aconteceu com a gaúcha Paula Pfeifer, de 31 anos, que resolveu contar sua história de superação no livro Crônicas da Surdez (Plexus Editora). A ideia era desmistificar os tipos de deficiência auditiva, incentivar os que sofrem a encará-los e buscar ajuda adequada para ouvir os sons do mundo. "Quando se pensa em surdez, o principal equívoco é acreditar que todos usam a Língua Brasileira de Sinais (Libras) para se comunicar", diz Paula.
Ela, que é cientista social formada pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e funcionária pública atuante como técnica do Tesouro em seu estado, recebeu na adolescência o diagnóstico de algo que tentou driblar durante anos: a deficiência auditiva bilateral neurossensorial progressiva, de caráter moderadamente severo e irreversível (com o passar do tempo, o sentido vai se perdendo ainda mais). Após primeiro renegar o problema e só depois assumir a surdez, numa viagem teve a certeza de que era preciso dividir sua experiência com as outras pessoas.
Foi então que, em 2007, ela criou o blog Sweetest Person (sweetestpersonblog.com), que trata de moda, beleza, maquiagem e literatura e soma aproximadamente 350 mil acessos mensais. A força da comunicação a levou a colocar no ar, em 2010, outro blog, o Crônicas da Surdez (cronicasdasurdez.com), com cerca de 30 mil visitas ao mês, em que aborda os problemas e as possibilidades de quem, como ela, sofre com o problema. "Eles significam a possibilidade de me comunicar com pessoas que estão tão longe, mas, ao mesmo tempo, tão perto, vivenciando experiências de vida muito parecidas com as minhas", comenta.
Comunique-se
Tipos de comunicação possíveis a pessoas com deficiência auditiva:
Surdos sinalizados – são as pessoas com surdez pré-lingual, ocorrida antes da aquisição da língua, e que se comunicam exclusivamente por meio da Libras.
Surdos oralizados – são aqueles com surdez pós ou pré-lingual e que se comunicam oralmente, assim como os ouvintes.
Surdos bilíngues – são aqueles que se comunicam das duas formas.
Ouvindo com os olhos
Foi, justamente, por conseguir ler os lábios de quem conversava com ela em português, inglês e espanhol que Paula conseguiu deixar seu problema em segundo plano na infância e parte da adolescência. Como ia bem na escola, se relacionava socialmente e falava normalmente, poucos desconfiavam de sua perda auditiva. Fora isso, diagnósticos equivocados protelaram a verdade até os 16 anos.
Depois do baque e de muitas pesquisas, veio a fase de encarar os aparelhos, que, visíveis, denunciavam a deficiência até então invisível. E veio também a decisão de levar adiante a forma oral para se comunicar, sem usar a Libras, provando que é possível conviver com a surdez sem viver em função dela.
Hoje, usando aparelho e se preparando para fazer um implante coclear (equipamento eletrônico computadorizado que substitui totalmente o ouvido de pessoas com surdez), Paula ainda acha o máximo conseguir ler os lábios das pessoas, o que, para ela, é o mesmo que ouvir com os olhos. "Os aparelhos auditivos são meus melhores amigos e a leitura labial, meu anjo da guarda", define.
As vozes das pessoas que ama e os latidos dos seus cachorros são os sons que pode ouvir e que mais a tocam. "Porque eles vão dos ouvidos direto para o coração", justifica. Enquanto não chega o momento de colocar o implante, se ela deixar de usar os aparelhos, não ouve praticamente nada.
Em relação às modalidades linguísticas que tanto pesquisou em sua graduação, Paula prefere não apontar qual é melhor. "É uma questão demasiadamente complexa. Minha única opinião é que qualquer surdo só tem a ganhar dominando pelo menos a modalidade escrita do idioma do país onde vive", defende.
Inclusão: proposta de vida
O Instituto Dona Carminha, fundado em 1976, na Vila Lemos, por Maria do Carmo Arruda Toledo, mãe de uma criança surda, é referência em todo o Estado de São Paulo no atendimento a pessoas com deficiência auditiva. Atualmente, cerca de 70 crianças e adolescentes passam por lá de segunda a sexta-feira.
A creche é frequentada por 272 crianças de 2 a 5 anos, e o projeto inclusivo abriu vagas também para a comunidade em geral. Já na escola de Ensino Fundamental são atendidos apenas surdos oralizados e sinalizadores entre o primeiro e o quinto anos, além da clínica fonoaudiológica. "A deficiência auditiva, em si, tem muitos mitos. A inclusão dos ouvintes na creche ajuda a desmistificar o assunto e a provar que inclusão não pode ser só uma proposta escolar, mas uma proposta de vida. Hoje, temos 50% de ouvintes e 50% de surdos convivendo muito bem e aprendendo tanto Libras como português", informa a diretora pedagógica, Patrícia Torres.
Para ela, os deficientes auditivos de Campinas são bem atendidos e de forma globalizada, com muitas instituições atuando conjuntamente para uma real inclusão. "Isso porque alcança também a família e os encaminha ao mercado do trabalho", diz.
Ganhos com o implante coclear
Embora os aparelhos auditivos comuns de hoje sejam menores e mais eficientes do que os usados em décadas passadas, alguns graus de intensidade da perda auditiva não podem ser reabilitados com o uso de equipamentos convencionais. O implante coclear, uma prótese eletrônica de alta tecnologia introduzida cirurgicamente na orelha interna, é o que há de mais moderno quando se trata da possibilidade de reabilitar a audição nas perdas profundas.
Conhecido como ouvido biônico, o dispositivo estimula eletricamente as fibras nervosas remanescentes, permitindo a transmissão do sinal elétrico para o nervo auditivo e sua decodificação pelo córtex cerebral, permitindo ao usuário perceber o som. Estima-se que, no mundo, sejam cerca de 60 mil pessoas utilizando o método; 5 mil estão no Brasil.
De acordo com o chefe da disciplina de Otorrinolaringologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Agrício Crespo (foto), onde mais de 700 pacientes já foram submetidos ao procedimento, o implante, composto por uma unidade interna e uma externa, pode ser feito poucos meses após o nascimento em crianças com diagnóstico de surdez confirmado, assim como em pessoas que já foram ouvintes e perderam esse sentido. "É necessário que o paciente tenha preservado seu nervo auditivo, pois o dispositivo substitui a função da cóclea, estimulando o nervo da audição de forma elétrica", esclarece.
Os aparelhos usados na cirurgia são modernos e com grande tecnologia acoplada. Crespo explica que eles são capazes de realizar um estímulo maior, gerando ao paciente um som de melhor qualidade e facilitando o entendimento. "Existem ainda novidades em relação aos eletrodos (parte que fica dentro da cóclea), havendo, hoje em dia, mais opções para doenças distintas, aumentando o número de pacientes que podem se beneficiar do tratamento", afirma.
Apesar do preço elevado (R$ 80 mil por ouvido implantado em clínicas particulares, mas é gratuito pelo Sistema Único de Saúde - SUS), o especialista da Unicamp diz que estudos relevantes de países desenvolvidos mostraram que o custo social aplicado no tratamento com o implante é ínfimo se comparado ao gasto social com um paciente surdo. "O portador de implante coclear torna-se uma pessoa ativa, independente, que trabalha e cria recursos próprios para si e para seu país, por isso é um investimento que vale a pena", reforça.