“Sujeito de poucas luzes” é uma de minhas expressões favoritas. Li-a pela primeira vez, há muito tempo, no 'Anedotário da Rua da Praia' (Ed. L&PM), de Renato Maciel de Sá Jr. Designa alguém ignorante, pouco esclarecido, desajeitado em seu limitado intelecto como um sujeito que, em um quarto escuro, esbarra em móveis e outros objetos ao tentar se locomover. O livro é uma coleção de histórias pitorescas envolvendo tipos idem que habitaram Porto Alegre e o interior do Rio Grande do Sul entre a Velha República e o Janguismo. O viés, me apresso em dizer, é o do humor, não o político, ainda que folclóricos “coronéis” — grandes proprietários e outras figuras, tão influentes quanto simplórias, apadrinhadas por suas afinidades como o poder — protagonizem algumas das melhores passagens. A falta de instrução de caudilhos como Carpano, um fazendeiro analfabeto batizado Ótero (assim mesmo, com acento no “o”, em nobre homenagem ao órgão reprodutor feminino) e cujo apelido tem origem impublicável, motiva passagens hilárias. Bem, sejamos justos: não é propriamente limitação de intelecto, mas desconhecimento dos avanços tecnológicos e outras coisas “da cidade”, ainda mais naquelas priscas eras, que o levavam a se envolver em situações de puro humor involuntário. Como quando, em visita a um prédio de apartamentos, entrou no elevador — grande novidade da época — e se assustou quando o aparelho começou a se movimentar: achou que estivesse entrado em um cômodo apertado e este estivesse despencando. “A la putcha!”, exclamou Carpano, usando interjeição gauchesca devidamente contaminada de castelhano. “Se foi o quartinho!”. Em outra passagem, que evidencia o contraste entre o ambiente rudimentar e os hábitos simples do campo familiares ao coronel com as afetações da vida moderna, Carpano, convidado para um restaurante chique, cometeu uma extravagância — também involuntária: com a maior naturalidade, começou a colocar cubos de gelo oferecidos pelo garçom sobre o arroz de seu prato. Incrédulos, os convivas o interpelaram: “Quem sabe o senhor não gostaria de trocar de prato?”. “Não, eu gosto no arroz mesmo”, respondeu, muito satisfeito, o coronel. Carpano também era dado a desconfianças e distrações — estas, motivadas um tanto por ingenuidade. Ainda moço, visitava pela primeira vez a fazenda do sogro, que acompanhado de toda a família, fazia um tour pelas instalações do local. A certa altura da visita, o velho apontou para o curral e explicou, usando verbete gauchês: “Deste lado fica a mangueira”. “Se nota pelo bostero”, retrucou o genro, causando consternação geral. Anos antes, sentado com a futura noiva na varanda, namorando aqueles namoros de antigamente, cheios de recatos e silêncios, picava fumo enquanto a moça tricotava. Ela, para quebrar o gelo, apontou as agulhas na direção dele e brincou, entre terna e matreira: “Te furo os olhinhos!”. O jovem Carpano, coitado, com sua desconfiança potencializada por uma ausência de senso de humor, entendeu aquilo como uma verdadeira ameaça: pulou da cadeira e assumiu posição ofensiva: “Pois vem, no más, que te furo o bucho!”. A moça, surpresa com a reação do namorado, reclamou: “Credo, Carpano! Eu só estava brincando!”. O bravo moço voltou a se sentar, com expressão aborrecida e desconcertada: “E precisava me dar um cagaço desses?”. No 'Anedotário' figura também o coronel Salustiano que, apesar de pouco culto, era dado a falar difícil. À frente de um batalhão, que voltava de uma das inúmeras refregas em que o Rio Grande do Sul se envolveu ao longo dos séculos, deu a ordem para dissolver a formação, dispensando os soldados. E caprichou no português: “Os que querem irem indo podem irem indo. Os restante estão deliberados”. Texto publicado originalmente em 8/7/2014