JOSÉ ERNESTO

De Bernard Shaw a Pedro Almodóvar

03/08/2013 às 00:00.
Atualizado em 25/04/2022 às 06:39

Em 1964 George Cukor dirigiu o filme My Fair Lady (Minha Bela Dama). O filme é baseado na peça teatral Pigmalião, escrita por de Bernard Shaw (1856 – 1950) em 1913. Conta a história de Eliza Doolittle (interpretação magistral da inesquecível Audrey Hepburn), uma florista paupérrima das ruas escuras de Londres. Vive de algumas moedas que consegue vendendo suas violetas na porta de um teatro. Em uma dessas noites ela conhece Henry Higgins, um culto professor de fonética.O personagem Higgins é vivido por Rex Harrison (1908 – 1990) e por sua atuação recebeu o Oscar de melhor ator em 1964. Ele tem uma incrível capacidade de somente pelo sotaque, descobrir a origem geográfica das pessoas. Quando ouve a horrível fala de Eliza, Professor Higgins se assusta, fica horrorizado com sua péssima dicção e sotaque de Elisa. Faz então uma aposta com o amigo, Hugh Pickering (outro nobre inglês), que é capaz de transformar num curto espaço de tempo aquela pobre e ignorante vendedora de flores numa dama da alta sociedade.Pelo prazer de vencer a aposta, submete Eliza por dias e noites à tortura de aulas para modificar a sua fala, seus hábitos, seus costumes, ou seja, a sua pele. A moça com muito trabalho se transforma e adquire um irretocável sotaque e comportamento de dama educada (para a época!). Professor Higgins vence a aposta. Vencida a aposta ele pergunta: e daí? O que fazer com o troféu? Devolvê-lo aos becos escuros e sujos de Londres? Depois de conhecer o brilho e a pompa da burguesia seria trágico! Amá-la para sempre? O final eu não conto, embora para a cultura atual seja fantasioso.Em 2012, Pedro Almodóvar dirige “A Pele que Habito”. No filme, Robert Ledgard (Antônio Bandeiras) é um famoso cirurgião plástico. Vive com a filha que tem problemas psicológicos causados pela morte da mãe, que teve o corpo queimado após um acidente de carro e posteriormente se suicida ao ver sua imagem refletida no vidro da janela. Pai e filha vão juntos a um casamento, onde ela conhece Vicente. Nos jardins da mansão Vicente a estupra. A situação desperta um grande trauma em Norma, que acredita que seu pai a violentou, já que ele a encontrou nos jardins desacordada após a violência.A partir de então Berto (como o chama sua mãe igualmente psicótica) elabora um plano para se vingar do estuprador. Nessa obsessão ele transforma, com sucessivas cirurgias, Vicente em uma mulher. À imagem de sua esposa entendo eu. Coloca-lhe uma pele macia e resistente a infecções e até ao fogo! Terminada a trabalhosa e psicótica transformação o que fazer com o troféu? Matá-lo? Amá-lo? Também não devo descrever o final, mas, comparado com o final de Shaw, creio que a reação do transformado foi mais adequada para a transformação sofrida.O que há de comum entre as duas situações? Muito. Claro que a violência física de Berto é infinitamente maior que a tortura cultural que Higgins impõe a Eliza. Mas tanto em Higgins como em Berto existe a fantasia da transformação do outro em algo que queremos. Talvez exatamente igual a nós. Nem sempre aceitamos descobrir diferenças. Descobrir e aceita-las talvez seja o segredo de amizades e uniões duradouras. Deve ser muito monótono conviver com alguém que tem exatamente os mesmos gostos. Um clone seria um bom amigo? Não creio. Será que chegaremos lá algum dia?Para refletir um pouco mais sobre o tema vale também a pena ver (ou rever) The Stepford Wives, filmado a primeira vez em 1975 (As esposas de Stepford) e novamente em 2004 (Mulheres perfeitas). O filme retrata um mundo de esposas “perfeitas” no qual nunca ocorrem desentendimentos entre marido e mulher. O filme surpreende e nos convida a pensar sobre o tema: conviver com diferenças.

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