Gastronomia

Cultura Panc

Ordinárias: até a pouco confundidas com pragas e mato, as Plantas Alimentícias Não Convencionais estão de volta à cozinha brasileira, endossadas por pesquisadores e grandes chefs

Erica Nogueira
24/05/2015 às 09:00.
Atualizado em 23/04/2022 às 12:51
PANC (Adriano Rosa/Especial para a Metrópole)

PANC (Adriano Rosa/Especial para a Metrópole)

Foto: Adriano Rosa/Especial para a Metrópole Risoto de parmesão com ervilha-borboleta (Clitoria ternatea), preparado pelo chef Andrew Buschee, do restaurante Bravíssimo, de Nova Odessa Nutritivas, ricas em aromas, cores e sabores, úteis à finalização de pratos, pouco conhecidas, porém. As Plantas Alimentícias Não Convencionais (Panc) vêm chamando a atenção de cozinheiros criativos e de pesquisadores engajados em torná-las mais acessíveis aos consumidores. No final do ano passado, por exemplo, os pesquisadores Valdely Ferreira Kinupp e Harri Lorenzi, ambos ligados ao Instituto Plantarum, em Nova Odessa, lançaram um verdadeiro compêndio: Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC) no Brasil (Editora Plantarum), que abarca (ou introduz) 351 espécies de Panc (nativas ou não), de maneira ilustrada e, de quebra, traz receitas elaboradas pelo chef Andrew Buschee, do restaurante Bravíssimo, de Nova Odessa. A sigla Panc, aliás, foi criada por Kinupp, biólogo e pesquisador de espécies nativas com valores nutricionais, em 2008. Trata-se de plantas de fácil propagação, que se adaptam a condições de solo e clima e que, em função das mudanças nos hábitos alimentares, deixaram de ser consumidas, passando a ser encaradas como daninhas. Serralha, beldroega, azedinha, bertalha, almeirão de árvore, caruru, folha de quiabo, jambu, mastruz e palma forrageira são exemplos. Coube a uma leva de interessados voltar a olhar para elas com mais carinho. Caso da nutricionista paulistana Neide Rigo, uma das precursoras de um movimento em prol das Panc. Ao caminhar pelas ruas de São Paulo, passou a identificar (com ajuda de especialistas), colher e testar as aplicações gastronômicas de cada achado. Parte do conhecimento ela partilha no blog Come-se (come-se.blogspot.com); outra, em palestras. “Sim, as pessoas têm se interessado por esse tema, sobretudo nos últimos dois anos”, garante. Foto: Leandro Ferreira/AAN Maria Ângela Severino, da USF Campinas: “Muitos encontram essas plantas no fundo do quintal, mas não sabem para que servem e como deve ser o preparo”   Da tradição à vanguarda A taioba está arraigada à culinária caiçara. Não à toa, o chef Eudes Assis, que cresceu se alimentando da planta “ordinária” em Camburi, no Litoral Norte de São Paulo, deu start, no início deste ano, na terra natal, ao Taioba Gastronomia, mix de bufê, restaurante e rotisseria. A vinagreira (ou hibisco) tem larga aplicação na cozinha maranhense. Já a ora-pro-nóbis é sabidamente na mineira. A trepadeira com folhas suculentas e comestíveis é defendida com unhas, dentes e muita pesquisa pela chef Mônica Rangel no restaurante Gosto com Gosto, em Resende (RJ). “É a carne do pobre”, diz. Há, ainda, chefs que não se atêm a um ícone, mas se postam mais “cientificistas”. Caso de Alberto Landgraf (Epice) que, em parceria com o irmão Guilherme, biólogo, finca novidades em seus menus a partir de referências botânicas e etnogastronômicas ceifadas em pesquisas. “Os irmãos Thiago e Felipe Castanho também têm ajudado a divulgar as Panc paraenses e amazônicas, executando um trabalho interessante sobre as plantas aromáticas que servem aos famosos banhos de cheiro”, lembra a professora de gastronomia da USF Campinas (Cambuí) Maria Angela Severino. Ela aponta que, felizmente, o tema vem despertando o interesse dos estudantes. Por isso, desde o ano passado, a instituição investiu na construção de uma horta que, além das aromáticas costumeiras (manjericão, hortelã, alecrim etc), que serão incentivadas a serem consumidas frescas e em sua totalidade, acolherá as Panc. “Representantes da nouvelle cuisine e, mais recentemente, chefs espanhóis como Ferran Adrià reforçaram a importância de se apostar em plantas não convencionais, por uma questão de segurança alimentar e também de inovação. O dinamarquês René Redzepi que o diga”, situa a docente. Redzepi descobriu que quase tudo no entorno do seu Noma era comestível, passou a criar menus com o que encontrava nos bosques e florestas e disseminou, tal chef número um do mundo, o conceito por aí. “O que ocorre no Brasil é que muita gente encontra essas plantas no fundo do quintal, até identifica uma ou outra, mas não sabe para que servem e como deve ser o preparo”, conjectura a professora. Foto: Leandro Ferreira/AAN _ TAIOBA: apresenta alta concentração de vitamina A, além de cálcio, fósforo, ferro, proteínas e vitaminas do complexo B. Tem sabor semelhante ao do espinafre, porém, mais suave. Precisa ser refogada para que se eliminem os efeitos tóxicos do ácido oxálico.     Em linhas gerais, a maioria das Panc deve ser consumida crua, para que tanto as características organolépticas quanto as propriedades nutricionais não se percam. “Os sabores azedos e amargos predominam. Mas, sabendo trabalhá-los na cozinha, impossível não se surpreender. Nesse sentido, especiarias serão úteis para modificar a cor ou o aroma indesejados”, aposta a professora da USF. Destaca, então, que a palma (e seus diversos tipos), explorada no Sudeste como mera base da alimentação bovina, é amplamente empregada na região Nordeste e em países como o México. “Serve a farinhas e a pratos mais elaborados. Se refogada fica mesmo uma delícia, apresenta característica babosa como o quiabo”, ilustra. Foto: Divulgação Flor da capuchinha   A flor da capuchinha já virou queridinha dos chefs, principalmente, os de bufê. A folha do hibisco, conhecida como vinagreira nas regiões Norte e Sul, costuma ser empregada em compotas e geleias. Em pratos como o arroz de cuxá, da cozinha maranhense, aparece refogada. “As pessoas precisam experimentar novos ingredientes e repensar a questão do consumo, mantendo o foco na sustentabilidade. Reaproveitar os ingredientes e recuperar aqueles que se perderam ao longo do tempo, pelo desuso, é saída totalmente viável.” Sob demanda  A Calusne Farms, com sede em Valinhos, é uma das principais fornecedoras de ervas finas, brotos, flores comestíveis e minilegumes aos cozinheiros dessas nossas bandas, nos últimos 15 anos. Por lá, algumas das Panc passaram a ser produzidas sob demanda, recentemente. Caso da azedinha, empregada nas culinárias francesa (em pescados mais gordos) e inglesa (como base de molhos verdes). Foto: Cedoc "Pensei: Tenho que conhecer mais as Panc". Viviane Moraes, do Estação Marupiara A planta tem incrementado as criações da chef Viviane Moraes, do restaurante Estação Marupiara, em Joaquim Egídio, especializado em comida brasileira e com vocação para pescados. O pirarucu com azedinha entrou no novo cardápio da casa, que também lista arroz de jambu. A chef, que vive a pesquisar novos ingredientes, conta que a primeira experiência com as Panc foi um tanto “desajeitada”. “Achei uma taioba no nosso quintal e dei uma mordida na folha. Parecia que estava mastigando espinho. Provavelmente, tratava-se de uma taioba brava, que é extremamente urtigante. Foi quando pensei: ‘tenho que conhecer mais as Panc’”, partilha. Desde então, ela tem conversado com os pesquisadores do Instituto Plantarum. “Descobri que eles fazem simpósios periodicamente”, frisa. Sérgio Calusne, da Calusne Farms, enumera alguns dos chefs que estão conectados com a levada Panc. André Bearzotti (Casa de Maria Bistrô), Marco Baracat (Baracat Buffet), Manuella Delatorre (Cayena Bistrô), Daniel Valay (tanto em eventos especiais do Royal Palm Plaza Resort quanto do bistrô La Palette) e Atelier da Culinária. “Se é um chef mais ousado, nos pede algo diferente. Mas ainda não tenho condições de atender em volume a nenhum deles. Note o caso da serralha. É uma nativa que tenho lá e que as pessoas dizem ser difícil de achar, mas para a qual ainda não tive demanda”, comenta. Foto: Divulgação Sérgio Calusne, da Calusne Farms: "São sabores diferentes, que não se encontram no mercado e que os chefs têm usado em maior escala"   Enquanto isso, ervas aromáticas importadas da Europa e dos Estados Unidos, como a menta mexicana e o manjericão tailandês, têm sido desenvolvidas nas estufas. “São sabores diferentes que não se encontram no mercado e que os chefs já têm usado em maior escala. Tudo depende do estilo do chef. O Sebastièn (Laurent Michaut), do Green House, é um dos poucos que conhecem e pedem ruibarbo. A Manu, do Cayena, tem me pedido jambu e folha de limão kafir. Quando alguém me encomenda algo, pesquiso, vou atrás e vejo se haverá viabilidade de produção”, pontua. Assim, vêm crescendo as miniplantações de vinagreira, ora-pro-nóbis e taioba etc... Foto: Adriano Rosa/Especial para a Metrópole Livro Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC) no Brasil: 351 espécies   O cozinheiro das Panc Durante a feitura do livro Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC) no Brasil, o chef Andrew Bushee foi instigado pelos autores a testar a aplicação das Panc na gastronomia. Segundo as orientações dos pesquisadores, ele levou certas espécies para a cozinha do restaurante Bravíssimo, que funciona no Jardim Botânico, do Instituto Plantarum, em Nova Odessa. O resultado foi tão surpreendente que algumas passaram a ser introduzidos, de forma sazonal, no menu do restaurante. “Fui redescobrindo a natureza, adquirindo outro vocabulário, outro paladar. Kinupp, que já morou em Manaus, vive me apresentando algo diferente. De repente, a gente se vê revisitando as coisas da roça e, dali a pouco, aparece um chef como a Neka Mena Barreto falando de uma Panc na TV. Sinal de que nosso trabalho está evoluindo”, situa.” Foto: Leandro Ferreira/AAN Hibisco A calda de hibisco (vinagreira) é comumente usada numa sobremesa preparada com morangos como ressaltador de sabor, por agregar acidez. De quarta a domingo, o restaurante oferece pães feitos com alguma planta diferente. Exemplo? De ora-pro-nóbis (Pereska acuelata) ou de tupinambor (Helianthus tuberosus). Ele também já testou saladas com flores de astromélia (Alstroemeria caryophyllaea) e malvavisco (Malvaviscus arboreus) e de góia (Momordica charantia). E o arroz de clitória (Clitoria ternatea) ficou interessante pela coloração azulada que adquire. “É uma trepadeira bastante conhecida na Tailândia. A flor é usada. Um dia, faltou tinta de lula para finalizar um risoto. Testei a clitória e o resultado foi bom porque em termos de sabor, há pouca alteração, mas na finalização...”, pondera. O coentro caboclo, daninha aromática, também já ganhou aplicação. A bertalha se acomoda no prato ainda no galhinho ou refogada. A castanha de monguba (Pachira aquatica), de sabor leve, assemelhada à castanha portuguesa, pode ser útil à finalização de pratos ou consumida crua. “São plantas interessantes, gostosas. Basta saber trabalhar. O problema é o marketing. Quando a gente conta exatamente o que é determinada coisa, as pessoas nem sequer se dispõem a experimentar. Se veem que é algo bonito e parecido com o que já conhecem, sim”, descontrai Buschee. Educar é pelo gosto.  

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