Sem mesmice: Raphael Desperite pertence ao clube de chefs modernos, mas não abre mão de curtir a cozinha com bossa
Quatorze anos atrás, Raphael Desperite era um menino inquieto brincando de restaurateur em meio às mesas do Marcel. Negócio de família, encampado pelo avô imigrante desde quando comprou o restô do amigo francês (Marcel, oui), na década de 60.
A cozinha clássica francesa do restaurante ganhou pitacos autorais do chef há cinco anos – para pontuar o timing exato desse novo “momento”. Reconhecido aqui e acolá como expoente da alta gastronomia, Desperite diz que aprendeu muito com os espanhóis, mais ainda com os portugueses; e sempre com os afetos – ele reporta em gentileza a expertise, sem eufemismos ou recalques e com a certeza de que as trocas entre cozinheiros são imperativas. Esperto, diz que corre (e de tênis também, pois é maratonista) a favor da própria inspiração. “Tento abrir meu leque de referências. Quanto mais se trabalha um produto, de preferência junto ao produtor, mais acessível ele se torna.”
Foto: Tartare de atum Tartare de atum Durante passagem recente por Campinas, adiantou alguns ensejos numa espécie de “mise en place colóquio”. Diz ele que anda se aventurando nalgo que adora: aprontar jantares exclusivos em locais inusitados.
Apelidado de “Fechado para o jantar”, o projeto do bamba de 28 anos teve nova edição neste final de semana, aliás. “Cozinho, monto os pratos, executo o serviço de vinhos, sempre há um som rolando.
É um evento com duração de três dias, para 40 pessoas, no máximo. Volto à beira do fogão de um jeito mais descolado. Acho que, de certa forma, a gastronomia ficou meio chata.
Todo mundo diz que entende dela, palpita e não curte. E nessas ocasiões, recorro a situações mais acessíveis e surpreendentes. A ideia é sair da mesmice”, aposta.
Em síntese, avalia que a América Latina é a “bola da vez”, por uma questão de lógica. E decreta: “A gastronomia é muito mais do que restaurantes e chefs. É contato, é troca. Na Europa, essa realidade já é concreta. Há os superclubes, há as feiras gastronômicas de rua, algo que está pipocando por aqui.
Tome por exemplo a gente cozinhando no Minhocão (durante a Virada Cultural deste ano) ou em O Mercado. Quebrar paradigmas é algo dessa nossa geração de cozinheiros”.
E aí, ladeia-se a Rodrigo Oliveira (Mocotó), Thomas Troisgros (66 Bistro e Olympe), Thiago Castanho (Remanso do Peixe e Remanso do Bosque), Alberto Landgraf (Epice).
“Há dois anos, toquei o festival “Cozinha Bossa Nova” justamente por essa afinidade. Essa moçada dividia comigo a brigada do Marcel, a gente criava junto um menu exclusivo, inédito, permeado por trocas. Existe uma união tão grande entre a gente que, quando vamos a eventos como o Mistura, no Peru, a ocasião vira uma festa.” A tendência, pontua o chef, é valorizar os bons produtos (não necessariamente apenas os locais) e, para isso, as trocas de ideias são cada vez mais imperativas.
No encalço das trocas
Nova oportunidade para encontros ocorre no início do próximo mês, durante o Mesa Tendências (Semana Mesa SP). Desperite será um dos cozinheiros do jantar de abertura. “Serão quatro chefs brasileiros e quatro estrangeiros cozinhando.
Não darei palestras dessa vez. Noutra edição, apresentei junto com o chef André Saburó, de Recife, o estudo de mais de um ano que fizemos, em alto mar, sobre o peixe beijupirá, cujo fígado pode ser usado como foie gras”, lembra o chef, pesquisador por predileção, do tipo que já saiu no encalço de cogumelos nacionais Serra da Cantareira adentro e mais.
É fato que ele tem deixado essa vertente adormecida, por conta de tantos compromissos. “É preciso ter uma baita disciplina para ver resultados.” Lembra, porém, que essa onda de investigar aplicações de produtos “desconhecidos” começou quando esteve em Açores com Sobral e um biólogo marinho. “Ele me mostrou umas vieiras gigantes e outras coisas. É interessante pensar em quantas espécies da fauna e da flora a gente desconhece. E mais interessante ainda cogitar quais seriam as aplicações desses produtos na gastronomia.”
Daí haver cutucado diversos especialistas até chegar ao biólogo Gil Felipe, que fora docente da Unicamp. “Ele publicou diversos livros sobre botânica relacionando os estudos à gastronomia. Contribuí com receitas, inclusive. Fazemos bastante trocas. José Barattino (chef do Emiliano) tem um trabalho bacana nesse sentido, mais com os orgânicos.”
Na manga, tem um livro de gastronomia, espécie de diário de maratonista produzido em parceria com a nutricionista Patrícia Bertolucci, com receitas funcionais para quem pratica corrida. “Deve ser publicado neste ano, ainda”, adianta.
O início
Pode-se dizer que o Marcel é a casa de Desperite desde sempre (embora o mundo lhe sirva moradas, sempre). Era ali que ele arrumava tempo para ver o pai entre as pausas da escola, para conviver com os seus, para aprender a administrar um negócio.
“O La Popote (restô classudo, referência entre os paulistanos na década de 60), que era de meu avô, pegou fogo. O Marcel estava voltando para a França, foi a época certa para que o bistrô ganhasse acento mais requintado”, pontua o chef. Entre os pratos emblema da casa, souflé, ensinado num passo a passo divertido durante a aula show para convidados na 4ª edição do Galleria Gourmet.
Num dia de prosa franca, o pai lhe sugeriu que fosse à França estudar in loco toda a técnica que já assistia na prática. “Voltei da França (cursou a École Ritz Escoffier) decidido a ser não restaurateur, como tinha previsto, mas cozinheiro. O estágio no (hotel) Ritz (parisiense) me botou nesse eixo, as técnicas eram absurdamente perfeitas. De volta ao Brasil, fui ganhando a confiança do meu pai e introduzindo criações no menu do Marcel, de um jeito sutil. Hoje, o cardápio tem mais minha cara”, comemora.
Isso porque, entre França, aos 17 anos, e Brasil, houve um acento ibérico de dar nó na cabeça do chef. Vitor Sobral, chef português mundialmente aclamado e homem à frente do Tasca da Esquina lisboeta, baixou no Marcel para uma lauta refeição... E bem num dia daqueles de início de virada do século, cozinha espanhola de vanguarda em ascensão. Ao descobrir quem era o cozinheiro, Sobral tratou de convidá-lo para uma temporada.
“Fica na minha casa, ele me disse. Passei o Natal com a família do chef e segui os passos que ele dava. Fomos a África, inclusive. Isso me deu, além da parte técnica e da noção de hierarquia (Sobral é descrito por Desperite como metódico e rigoroso), uma ânsia de ter um cuidado mais que especial com o produto.”
Entre Portugal e Espanha, foi-se um ano. No retorno ao Brasil, em 2007, a ousadia que era própria do chef, mas acautelada, revelou-se em menu desgustação, em novas propostas de cardápio, em auto-provocações constantes em auto-desafios. “O legal dessa história é ver que a gastronomia está em constante transformação. E não pode haver limites.”