CECÍLIO

Contágio

Cecílio Elias Netto
31/07/2015 às 05:00.
Atualizado em 28/04/2022 às 17:53
Cecílio Elias Netto ( Cedoc/RAC)

Cecílio Elias Netto ( Cedoc/RAC)

{HEADLINE}{TEXT}Os sentimentos humanos são viróticos. Contagiam. Propagam-se. Podem tornar-se epidêmicos, endêmicos. E pandêmicos, como acontece nas guerras mundiais, movidas a ódios. Há um mistério que autores, pensadores — como Jung, Campbell, entre outros — tentam entender e não entendem, ainda que dêem explicações preciosas.Estamos, perigosamente, sofrendo o contágio dos ódios, o mais terrível dos sentimentos. O ódio é irracional e, portanto, impossível de ser enfrentado pela racionalidade humana. Sentimentos têm, como contraponto, outros sentimentos, opostos. A Oração da Paz — atribuída a São Francisco, mas elaborada por autor anônimo — é uma das belezas do coração humano e nos traz respostas àquilo que a razão não consegue solucionar: “Onde houver ódio, que eu leve amor (...) onde houver desespero, que eu leve a esperança (...) onde houver trevas que eu leve a luz”. Está nela, em meu entender, a síntese do verdadeiro sonho humano de fraternidade, de solidariedade, de compaixão.Portanto, se os ódios contagiam, o mesmo acontece com o amor, com a beleza, com a generosidade. Que, também, se espalham, infiltrando-se por brechas das barreiras de aço da injustiça, das crueldades. A diferença está no fato de os ódios serem espetaculosos, ostensivos, visíveis e perceptíveis. E as belezas, quase sempre, silenciosas, sutis, suaves, feitas de ternura. A pouco e pouco — se houver convicção nelas — também contagiam, propagam-se. Portanto, é possível, sim, pensar-se numa epidemia de amor.As imposições — positivas ou negativas — apenas nos alcançam quando, de uma ou de outra forma, permitimos aconteçam. As estruturas familiares são a grande base dessa estrutura perversa de ódios, quando deveriam ser o nascedouro da solidariedade. Se permitirmos que sistemas político-econômicos sejam mais poderosas do que o amor nas e das famílias, tornamo-nos, então, ovos da serpente. O sentimento de fraternidade não surge de cima para baixo, pois isso seria uma outra escravidão. Ele nasce, brota e se expande de baixo para cima. O cume da pirâmide depende da estrutura que a sustenta.Não há mais como negar a força, o poder e a prevalência dos ódios praticamente no mundo todo. Quando a vida e a existência passam a ser pautadas pelo materialismo obstinado, pela irracionalidade abafando a voz dos corações, eis que estamos diante do caos. Que é onde o ódio predomina, na lei dos mais fortes, na ausência de justiça, na terrível perda de esperanças.A economia não pode prevalecer sobre a Política. E percebam que escrevi em maiúsculo, que é o verdadeiro sentido de Política. É esta — a partir de princípios de justiça e de solidariedade — que deve se impor, determinando os rumos da Economia. (Agora, com letra maiúscula também).O contágio da beleza começa em casa. E não à toa esse incrível e providencial Papa Francisco, em sua admirável encíclica, chama o mundo, a Terra de “a nossa casa comum”. É uma carta que nasce destinada a se tornar histórica. Ele conseguiu expressar-se por todos os humanos , ainda, mantêm a nobreza de sentimentos. Se os lares contagiarem-se de amor, essa beleza tornar-se-á epidêmica.Peço permissão ao leitor para retomar uma experiência de contágio que vivi em minha própria casa. Foi, para mim, uma minha incrível descoberta. Aconteceu com uma jovem doméstica que trabalhava conosco. Nos seus 20 anos, estava noiva, era gentil mas — percebia-se — preciosa pedra à espera de ser lapidada. Sem estudos e sem formação.Certo dia — estando, eu, sem automóvel — pedi uma carona ao noivo dela, que fora buscá-la em nossa casa. Já ao entrar no carro e antes de sentar-me, surpreendi-me: eram sons das Quatro Estações, de Vivaldi. Perguntei-lhe se a música vinha de rádio ou de CD. E ele me respondeu: “É CD. De tanto ouvir música clássica na casa do senhor, ela (a namorada) me convenceu a comprar discos com esses compositores. Agora, fazemos coleção”.A moça fora contagiada pelo belo, sem que eu tivesse a pretensão ou a vontade de impô-lo. E o casal seduziu outros amigos com a magia de Brahms, de Beethoven, de Vivaldi. Aconteceu o contágio. E, em seguida, uma pequenina epidemia de doçura musical.Não há outra saída, creio eu: contagiar, contaminar, fecundar o nosso pequenino mundo pessoal com amor verdadeiro, com renúncias a tolices e com doação de generosidade — para, em seguida, ele contagiar e fecundar a “nossa casa comum”. Esta é a face esperançosa de minha utopia de renovação do mundo. Ela é cristã. Apenas isso. Ora, se dizemos ser, a nossa, uma civilização cristã, por que espaço preferencial a Mamom, esse deus dos materialismos, de vidas sem alma? O resultado está aí.

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