andré fernandes ( Cedoc/RAC)
Trabalhando numa atividade pedagógica de educação da afetividade pelo cinema, invariavelmente, na hora do debate, todos acabam sendo levados à indagação interior sobre as razões de nossa existência e do sentido último do mundo que nos cerca. Entretanto, para que essa dimensão reflexiva possa vir à tona ao longo da vida, é necessário que a pessoa desenvolva um certo rol de atitudes fundamentais. Caso contrário, outros fatores externos podem corrompê-la, a ponto de não se ter a vida examinada da pesada sentença socrática.Naquele rol, há uma postura que se destaca muito: o saber fomentar a admiração. Tomás de Aquino afirmava que o filósofo e o poeta têm em comum a capacidade de admirar-se. Uma pessoa que costuma refletir — sobre si ou sobre os problemas que o rodeia — reconhece e admite sua própria ignorância, abre-se à verdade e deixa-se, por assim dizer, fascinar-se por ela.A admiração é, segundo a antiguidade clássica, a porta de entrada para o desejo de conhecer e refletir. Conta-se que muitos filósofos eram tão capazes de admiração que não percebiam o que acontecia ao seu redor. Tales de Mileto, na batalha de Salamina, teria parado no meio do combate por ter-lhe ocorrido uma ideia e não viu que o inimigo persa já se aproximava rapidamente. Também conta-se dele que, tomado de contemplação pela beleza do firmamento, teria caído num poço.Tomás de Aquino era o único que estava calado num solene banquete patrocinado pelo rei francês, num castelo onde todos conversavam sobre as amenidades típicas de uma sociedade medieval, quando deu um golpe na mesa com a mão cerrada, exclamou: “É isso!”. Havia descoberto um argumento contra as teses maniqueístas do Catarismo. Minha esposa classificou-me na categoria dos “jovens surdos de trinta e poucos anos” (logo, serei promovido de faixa etária): como ando tão admirado ultimamente, quando ela fala “alho”, eu entendo “bugalho”...A admiração, essa atitude ao mesmo tempo intelectual e afetiva, implica que o centro de interesse esteja na coisa que desperta a admiração. Seria como a criança que toma um vaga-lume na mão para examiná-lo: uma postura ativa, gerada pela admiração, faz com que a criança saia ao encontro do ser daquele animal e, ao mesmo tempo, uma postura passiva faz com que ela se abra para receber o que o ser do vaga-lume tem para lhe dizer.Os pais da modernidade inverteram essa atitude: o princípio não mais consiste em querer saber. Mas em policiar tudo o que nos é dado a conhecer por intermédio da dúvida. Uma espécie de desconfiança autocentrada. Descartes, em suas famosas regras, considerava melhor renunciar à busca de qualquer verdade a fazê-lo sem método. O método é importante, mas nem toda verdade precisa de um método.Se a admiração tem algo de juvenil, a dúvida sistemática tem algo de velho. A admiração confia na realidade. A dúvida desconfia por princípio, ou seja, tem um certo medo, que induz um estado de investigação defensivo. O conhecimento sobre o vaga-lume, mais do que dado pela realidade, tem que ser tirado à força e, logo, não traz uma sensação de gratidão, mas de vitória conquistada. Não é a toa que sempre que isso acontece, o fato logo entra para o rol dos “triunfos da ciência”.A admiração não é só o primeiro passo para uma vida refletida. Mas, sobretudo, aquilo que a sustenta, porque ela alimenta a vontade de saber cada vez mais. A admiração não se põe entre parênteses por mais profundo que seja o pensamento de alguém sobre qualquer assunto: sempre que se reflete, admira-se e, na medida em que se cresce no conhecimento, aumenta a admiração.Talvez seja por isso que gaste um bom tempo e dinheiro em sebos e livrarias virtuais, até que a impiedosa tesoura do orçamento doméstico corte meus sinceros desejos de admiração... Se a minha realidade orçamentária familiar fosse a da Europa, eu bem que me sentiria tentado a ser a Itália ou a Grécia aqui de casa: gastaria à vontade com livros e mandaria a conta para a minha esposa que, por ser disciplinada financeiramente, lembra, em muito, a rigidez fiscal da Alemanha...A pessoa que se admira é aquela que começa a caminhar pelas sendas do conhecimento e quer saber mais, porque almeja chegar ao fundamento de todas as coisas, como fez o nosso excêntrico Tales de Mileto, ao atribuir à água o excêntrico princípio de todas as coisas. Entende-se, assim, porque Goethe afirmava que o máximo que um homem pode alcançar é a admiração. Com respeito à divergência, é o que penso. Admiradamente.