Nos meses seguintes ao sórdido golpe militar de 1964, a ditadura trouxe o fel que amargou almas ainda sedentas de liberdade. A minha era uma delas, nas grandes ilusões e esperanças dos 23 anos. Os tempos de João Goulart eram confusos, caóticos, medíocres. Mas não justificavam golpes militares, já tentados antes e por várias vezes. Esperávamos 1965, quando aconteceriam novas eleições e os nomes de Juscelino Kubitschek e Carvalho Pinto renovavam esperanças. Somente quem viveu a experiência de, num jornalzinho de interior, resistir à ditadura poderá avaliar o peso e a angústia da aventura. O jurista Pedro Aleixo — que era vice-presidente de Costa e Silva, no ano da edição do AI-5 — advertira, posicionando-se contra o rompimento das instituições: “O perigo das ditaduras está no guarda da esquina.” E meus companheiros e eu sentimos essa miserabilidade na pele, na carne. Para se ter ideia da tragicomédia, em 1965 — e dirigindo apenas um jornalzinho, numa então pequena Piracicaba — militares exigiram que se abrisse, contra mim — jornalista jovem e desconhecido — um inquérito policial para me enquadrarem na Lei de Segurança Nacional. Ou seja: de Piracicaba e de meu pequeno jornal, eu era considerado uma ameaça à segurança do Brasil! Deveria sentir-me honrado, mas as farsas não são condecorações. Pois bem. Numa noite de muita angústia, naquele inicio de ditadura, senti a necessidade vital de escapar do lamaçal que nos inundava, das ameaças, perseguições, sobressaltos, decepções. Era como se o jornalismo fosse uma latrina onde se jogavam todos os dejetos. Ou — como os ditadores queriam — lojinha de se vender doces, perfumes, bijuterias. Era sufocante, a tortura diária. Percebi, então, que eu não iria resistir, entrando em colapso moral e espiritual. Foi quando tive o ímpeto de criar uma coluna, no jornal, inteiramente intimista, pessoal, onde eu pudesse conversar comigo mesmo, olhar-me no espelho, não me deixar perder pelos bombardeios psicológicos diários. Acabei, na verdade, escrevendo como que um diário de meus sentimentos, emoções, reações, alegrias, tristezas, em poucas linhas do cotidiano. Aquilo me salvou. Era, na verdade, um confiteor o que eu fazia. E, para meu espanto, percebi que conseguia transmitir o que também outras pessoas sentiam, percebiam, não tendo, porém, como se manifestar. A coluna sobrevive até hoje, 49 anos depois. E aconteceu-me que, a partir dela, se me tornou um hábito escrever intimistamente, quase que na expectativa de um colóquio ou de uma interlocução com quem viesse a ler. De qualquer maneira, era e continua sendo minha limpeza de coração, o tirar espinhos da alma, uma forma muitas vezes desesperada de tentar impedir que o espírito se contamine. Estou querendo dizer que cá estou, hoje, com um outro confiteor. Mais um, sabendo que não será o último. Ora, não estou em depressão. Mas admito que o meu é um dolorido estado depressivo. E bendigo os que estão deprimidos, estranhando quem não o esteja. Pois é preciso ser bruto, insensível, letárgico, endurecido, comatoso — aquele que não se sentir deprimido diante do que estamos vivendo de violência e de desumanidade. Até as pedras se lamentam diante da selvageria dos humanos. Os animais convivem melhor entre si. Decidi fazer e estou fazendo as minhas cerimônias de adeus. Já o disse à minha família, a amigos. Disse-o, também, ao Nélson e ao Marcelo, diretor e editor cá deste jornal. Não se trata de despedir-me da vida, nem do mundo. Trata-se de negar-me a participar de um estilo de vida e de uma imagem de mundo que não me dizem respeito. Nem fuga é, nem covardia. Mas uma profunda consciência de não pertencer a nada disso, de nada ter a ver com tanta mediocridade, com as superficialidades e pequenezes que foram entronizadas como exemplos de vida. Ora, insisto: não estou em depressão, pois sei como enfrentá-la. Mas não consigo evitar um estado depressivo que me toma a cada perplexidade, a cada espanto, a cada indignação dos tantos que se me repetem no dia a dia. Onde estou, para onde vou, como nos permitimos chegar a essa balbúrdia toda? Sinto-me um exilado ou incapaz de participar do jogo. Pois, antes, havia regras — mesmo as arbitrárias — e os inimigos eram conhecidos. Agora, o jogo é sem regras e há-se que lutar sem conhecer o inimigo ou saber contra quê ou quem. É como se se lutasse inutilmente por nada. A minha geração é culpada. Nós criamos o “é proibido proibir”. Sem limites, a balbúrdia aconteceu. Fomos expulsos deste outro mundo, caótico e bárbaro. E nem sequer podemos nos lamentar. Depressivos e deprimidos, eis a nossa penitência.