Voltei a ouvir heavy metal. (“Meus parabéns”, imagino meu pai dizendo, com um sorriso irônico e um meneio afirmativo de cabeça que significa exatamente o contrário: “Meus pêsames”). Não se trata, lhes asseguro, de um rompante tardio de rebeldia. Sou adulto, estou na casa dos 40, tenho defeitos e limitações, mas também discernimento sobre algumas coisas. Por exemplo, que existem discos de jazz maravilhosos, assim como gravações soberbas de Bach e Beethoven, compositores que roçaram a face do divino — como aqueles aviões que atingem os limites da estratosfera e onde pode-se ver o dia e a noite se encontrarem.Lembro, aliás, de ter lido que o heavy metal, ouvido em alto volume, de preferência num show, é capaz de provocar a mesma sensação de arrebatamento de uma orquestra sinfônica. Vasculho na memória quantos shows de uma banda do gênero eu assisti (algumas) e a quantos concertos eu compareci (pouquíssimos). E chego a uma conclusão que, se não chega a corroborar essa tese, aponta num sentido parecido. E, ao mesmo tempo, me coloca numa posição contraditória, embaraçosa até.Explico. A experiência mais forte que tive, como espectador, foi durante uma apresentação de 'Carmina Burana', a cantata profana de Carl Orff, no Teatro de Arena do Centro de Convivência, em Campinas, no início dos anos 90. O local estava lotado, mas consegui, abrindo caminho pelo público aboletado na rampa formada por um dos tetos do complexo, encontrar um lugar lá em cima, sem proteção e de onde a queda certamente seria fatal. Aos primeiros acordes de Fortuna Imperatrix Mundi, em que orquestra e coro entram em fortíssimo, com o pé na porta, fui tomado por uma fortíssima sensação física, uma mistura de vertigem com arrepio, que me percorreu a espinha. A altura em que eu estava sentado pode ter contribuído para a experiência, mas me sentia como se minha alma estivesse sendo sugada em direção ao palco, como num sorvedouro. Nunca havia sentido algo parecido.Daí reside o meu embaraço: por coerência, um sujeito que descreve uma experiência quase extrassensorial como essa deveria ser habitué de uma sala de concertos, e não alguém que confessa estar reincidindo num estilo de música que ouvia na adolescência, um gênero bastardo de uma linhagem bastarda que remonta aos EUA do tempo dos escravos.E, se for lembrar dos shows de heavy metal a que compareci, essa contradição fica ainda mais acentuada: foram experiências em que o aperto provocado pela multidão e o calor foram coadjuvantes mais que indesejáveis.Por que então, meu Deus, se entregar à audição de uma música tão mundana, agressiva, por vezes obtusa em sua estridência? Não sei ao certo. Talvez porque a audição de um concerto, uma ópera requeira atenção, concentração e disponibilidade: são peças longas, complexas e exigem total entrega do ouvinte. O heavy metal, por outro lado, pode ser ouvido enquanto se faz outra coisa e obedece, de maneira geral, à forma e conteúdo ditado pelos cânones da música popular, com estrutura mais simples e faixas de curta duração. E este é um tempo de velocidade e fragmentação do qual não me atrevo a dizer que não faço parte.E talvez também porque o “metal pesado” mexa com os recantos mais primitivos do cérebro, compartimentos ligados à agressividade, à competição. É, de certa forma, um flerte com a violência, ainda que cenográfica.Me lembro da primeira vez, aos 14 anos, em que ouvi algo que se possa chamar de heavy metal: o rádio tocava uma música da banda Kiss, que naquele ano viria ao Brasil. Fui arrebatado de imediato por aquela massa sonora de guitarras, a bateria em um andamento tribal. Minhas narinas se dilataram, meus olhos se arregalaram e, sei que soa clichê, senti meu coração bater mais forte, assim como acontece quando nos deparamos com algo que, por algum motivo, nos diz muito. Aumentei o volume, olhei para minha mãe com uma mistura de desafio e orgulho, e sentenciei: “Isso é heavy metal!”.Nos últimos tempos, voltei a ter essa sensação ao redescobrir em casa alguns discos do gênero, três ou quatro, aos quais tenho me dedicado a ouvir em casa — em um volume civilizado para não importunar os vizinhos e para não aporrinhar a minha mulher, que abomina esse tipo de música — e no carro — quando me dou ao direito de uns tantos decibéis a mais. Me dá uma sensação de plenitude, talvez a mesma que sentiria se frequentasse salas de concerto, algo que não descarto fazer algum dia.