ZEZA AMARAL

Com paixão e saudade

22/10/2020 às 06:22.
Atualizado em 27/03/2022 às 19:45

A saudade está na acácia imperial, alegremente amarela e quase se derramando como leite pelas calçadas da cidade. A sibipiruna floriu também, rápida como o brilho da paixão. Aconteceu também de o ipê florir e anunciar florada aos olhos das ruas, avenidas e calçadas, como se canção fosse de cor e luz a estimular os inocentes e os descrentes do amor. Vieram os namorados à praça sem perceber o que tudo estava a dizer a respeito de seus sonhos, temores e esperanças, e assim se foram perdidos em seus lábios molhados de tesão e sofrimentos de ausência, ele para lá, ela para cá, unidos apenas ao quente da carne, ao frio do travesseiro insone. Teve uma nuvem passando e passeando pelo céu azul quase se acinzentando de tempestades e raios. Teve também o homem cego que vende gaspareto na esquina, oferecendo sorte que ele mesmo nunca teve, que crua é a vida de quem tenta ajudar quem nada sabe do que a próxima esquina trará. Em algum lugar da periferia a senhora recolheu as roupas do varal e comentou com a vizinha que o sol estava bom para secar a roupa da família. E combinou de colocar a cadeira na calçada e trocar felicidades de receitas e lembranças de namoro, noivado e altar. Veio a moça que vende cosméticos a oferecer aromas e cremes para lembranças que ainda seguiam firmes em suas memórias, sem manchas ou pintas, que isso não é notado pelos maridos apaixonados e levemente embriagados de cerveja rápida e desejo de retornar ao lar, se lambuzar de amor e vigiar os filhos adormecidos. Nascem as rosas nos jardins suburbanos; nascem os lírios na Bíblia; nasce a cada manhã uma partida de pai indo ao trabalho, os filhos à escola e a mulher ali tecendo seus medos e encantos ao dia que se seguirá. Pequenas mangas se penduram nos galhos; o mamoeiro parece prometer bons frutos para fazer doce de mamão verde. A vida segue pelo bairro e a morte de alguém bate no sino da Igreja e não importa quem seja o caminhante final; e que assim seja louvado e sempre louvado pelos seus e por todos os cristãos. A acácia imperial floriu na rua da minha casa e fiquei embaixo dela para me deixar em calçada amarela. E assim fiquei dourado em meus cabelos acinzentados. E assim ficarei até chegar nos braços da minha companheira. E levo pra casa um pequeno ramalhete para a moça-que-manda-em-mim. E assim termino meu passeio pela tarde da pequena praça da Igreja São Paulo. E enquanto escrevo estas mal traçadas linhas (sempre quis escrever isso), a acácia se derrama pelo simpático vasinho que a companheira colocou ao lado do meu computador. Adianto serviço porque a Mantiqueira me aguarda. E lá a Internet quase não chega e o jeito é escrever em casa e não ficar sofrendo por conta da conexão. Já disse e repito que roça não combina com informática. Só com seriemas, pavões, pardais, tucanos e uma porção de canários. E quem se comunica mesmo por lá é o vento nas mangueiras e nas folhas do velho cajazeiro. E ainda tenho de deixar pronta uma crônica para o próximo domingo. E não faço e nem tenho a menor ideia do que vai rolar. Não, sem política. Já basta a pandemia e a grana nos glúteos dos corruptos. Mas arranjarei alguma boa história para contar. Mesmo porque as santas acácias estão dando a maior força para um escriba em pleno e total isolamento. E o meu canário está cantando que é uma beleza – acho até que ele está sabendo que vai pra roça. E assim vou encerrando por agora pois tenho mala para fazer. E também tratar de preparar um embornal de palavras. Domingo a gente se vê. De novo. Bom dia. Zeza Amaral é jornalista, escritor e músico.

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