O Brasil pós-20 de junho de 2013 já é outro. O momento é belo e ao mesmo tempo gravíssimo e é a hora da sociedade civil organizada se unir rapidamente e fortalecer as lutas pela democracia integral, com direitos civis individuais e coletivos. O país foi às ruas. Se houve violência, com certeza não partiu da imensa maioria, que sabe muito bem o que quer. E ela quer um país que pode ser muito melhor do que já conseguimos construir.
Muitos avanços já foram obtidos e eles devem ser agora reforçados, aproveitando a mobilização popular. Infelizmente tem ocorrido uma onda de conservadorismo fortíssima, e é a hora de deter essa escalada da reação, contra aspectos da Constituição de 1988 e também contra avanços culturais e éticos. Em plena rebelião nacional, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados aprova o projeto da chamada "cura gay".
Nos últimos tempos, tivemos a mudança do Código Florestal (ampliando os riscos de desmatamento), o crescimento da campanha pela redução da idade penal (o que significaria um golpe no Estatuto da Criança e do Adolescente, um dos principais avanços civilizatórios no país em décadas), a ascenção de forças questionando os direitos indígenas e quilombolas, o projeto que flexibiliza a "Lei da Ficha Limpa", a explosão de violência contra mulheres e homossexuais e várias tentativas de criminalização de movimentos sociais, entre tantos outras expressões do atentado a direitos civis individuais e coletivos. Sem falar na PEC 37, que atenta contra o Estado de Direito e o regime democrático, ao retirar do Ministério Público a competência de realizar investigações criminais.
Em etapas importantes da caminhada pela democratização plena, organizações de peso, como OAB, ABI, CNBB, SBPC e outras, se uniram para respaldar as liberdades democráticas. Pois agora é imperativo que todas as forças progressistas, com o apoio do povo nas ruas, se unam para defender o Estado laico, o direito à diversidade, o respeito aos direitos dos povos indígenas e quilombolas previstos na Constituição, a ampliação e não o retrocesso de muitos direitos constitucionais, o desenvolvimento em bases sustentáveis e justas.
Oportunidade igualmente para dar maiores saltos na saúde (com o fortalecimento e qualificação, e não fragilização, do SUS), na educação (por exemplo, com a garantia dos royalties do pré-sal para o setor), no transporte público (cuja crítica está na gênese da Revolta do Vinagre), na moradia, no saneamento e na infraestrutura em geral. O Brasil deu passos importantes, incluindo milhões em melhores patamares sociais. Não dá para perder essa chance histórica.
A série de manifestações parece indicar claramente, também, a saturação do formato do sistema político que dificulta mudanças estruturais necessárias. A multidão de jovens que percorreu as ruas de várias cidades brasileiras espelhava a sua insatisfação com um padrão de política partidária que não permite a real participação da juventude e da cidadania em geral na definição dos rumos da economia, dos programas sociais, dos projetos que representariam a valorização de nossa biodiversidade e recursos naturais riquíssimos.
Neste sentido, a onda de manifestações aponta para a urgência de aprimoramento de nossa democracia, no sentido de qualificação dos canais de uma democracia participativa, alicerçada em uma cidadania ativa e que resgate o sonho, o encantamento com a política que, em sua essência, significa a busca do bem estar coletivo. Em tempos de avanços rápidos das redes sociais, de uma cultura de ação horizontalizada, de conexões rápidas e crescentes entre coletivos, o modelo institucional do século 19 está mais do que defasado.
A luta contra o aumento nas tarifas de ônibus foi o estopim, mas essa mobilização projeta uma insatisfação mais profunda, mais aguda. O próprio modelo de cidade que tem vigorado no Brasil - e, vale dizer, em grande parte do mundo, vide exemplo de Istambul, onde a revolta começou pelo protesto contra as interferências em um parque público - também parece estar na base dessa série de atos públicos. Cidades "funcionais", onde o que vale é o poder "da grana que ergue e destrói coisas belas", da hegemonia dos automóveis sobre os pedestres, e que reduz a dimensão humana, massifica, atinge a alma do indivíduo, do cidadão comum.
É fundamental que a sociedade civil organizada, as ONGs e todos os grupos e setores identificados com a democracia assumam a dianteira do debate por mais avanços, ouvindo o clamor das ruas e impedindo que forças ultraconservadoras imponham seu obscurantismo. Apenas uma ampla e sólida coalizão pode impedir retrocessos e abrir o caminho para novas e fundamentais conquistas.