Não foi de repente. Eu sempre direi que sim. Foi de um dia para outro. Tudo estava bem e subitamente você não conseguiu mais andar sozinho, nem dizer frases sensatas. Confuso e cambaleante, perdeu, naquele domingo de setembro, a mansidão de uma vida inteira. A mente humana é cheia de artimanhas, quando se trata de não perceber uma dura realidade. Somos equipados com extraordinária capacidade de disfarçar e mentir – para nós mesmos, sobretudo. Escrevemos histórias novelescas, seja no papel ou dentro de nós, garantindo finais felizes para os personagens benignos. Trapaceamos, assim, o destino – tão indiferente a merecimentos. Não consegui reconhecer sua velhice, pai. Admitir que poderia haver um final injusto com sua constante bondade – quase ingênua às vezes. Inventei uma meia-idade interminável para você, feita de décadas serenas que não chegariam jamais ao futuro temido: adoecer e morrer. Imaginei uma estrada sinuosa, interrompida muito ao longe, num ponto inatingível à visão. Sei que todos perdemos algo, todos os dias – células, memórias, potências, esperanças – mas, para você, essa lei natural não chegaria ao limite extremo. Criei um horizonte estático, um pôr de sol em alto mar, onde a passagem do tempo é generosíssima: dourados, laranjas e azuis riscam o céu lentamente, até que a noite chegue soberana. É simples: não aceitamos perder quando amamos. Agarramo-nos ao presente. Decidimos que não haverá decrepitude, nem despedida – não anoitecerá (veja só como o amor nos torna suscetíveis e prepotentes!). Setembro terminou. Enquanto incontáveis cigarras ressoam agudos estridentes nesta primavera, você reclama das enfermeiras. Diz que são mandonas: o proíbem de caminhar livremente e, à noite, o fecham entre grades ao redor da cama.Tento explicar que é correta a intenção, precisam evitar que caia, mas você não aceita: quer sua mãe. Chama por ela. Grita às vezes. Num ato delirante, ressuscita a mulher que primeiro o compreendeu – a traz de volta para a cabeceira do imenso berço metálico que o confina e exaspera. Ela o seguraria no colo? Alisaria seus cabelos? Cantaria, talvez? Um bebê está perdido no mundo, sem alguém capaz dessa fina tradução. O que ele quer, afinal? Por que chora? O que balbucia? A mãe sabe. Inesperadamente, você chama sua mãe em alemão, no dialeto que tantas vezes me disse ter esquecido. Não esqueceu, pai. De algum lugar misterioso do cérebro irrompeu um menino que exige, recusa, deseja. Cheio de vontades e lembranças, está impaciente para viver. Ontem não engoliu os remédios, hoje pediu para nadar. Decretou que todos os dias são domingos. Trocaria o almoço por panetone Bauducco. Não se importa que a bermuda frouxa mostre as pernas feridas e o plástico da fralda - não tem pudor. Não tem medo. Não tem meias-palavras. O que sente, diz. Aprendi, recentemente, que as cigarras ressecadas no chão são apenas carapaças deixadas para trás. Não são cigarras mortas. Um novo corpo surge, pulsando sob a casca escura e envelhecida até que a faz romper. Voa alto, então, a jovial cigarra, abandonando seus restos inúteis. Dorme, pai. Descansa teu corpo exausto. Deixa que amanhã o menino ressurja, esse antigo menino que conheço agora, quase no instante de partir.