CECÍLIO ELIAS

Cheiro de café, cheiro de feijão...

07/02/2014 às 05:00.
Atualizado em 26/04/2022 às 22:08

Um casal amigo — já por volta dos seus 50 anos — costuma orgulhar-se pelo fato de, segundo eles, trocar o bujão de gás de cozinha apenas uma vez por ano. Orgulhosos, justificam-se: tomam o café da manhã em padarias ou no próprio trabalho; almoçam em restaurantes “por quilo”; lanches noturnos, fazem-nos no forno microondas ou em de seus muitos aparelhos elétricos. Nos fins de semana, almoçam com os pais, ora de um, ora de outra. E, inevitavelmente, a ida aos shoppings e pizzarias. Não tem filhos. Nem mesa de refeições, a não ser um balcão com algumas banquetas.Na verdade, na verdade, não tenho nada a ver com isso. E — fosse mais inteligente — nem mesmo teria o que comentar. No entanto, como rabiscador de palavras, sinto pena. E incomoda-me quando outras pessoas — dando de ombros — apenas bocejam: “São outros tempos”. Mas isso não é verdade. O tempo é sempre o mesmo. Outros são os costumes, os hábitos, as pessoas, a cultura — que abandonou o humanismo pela tecnicidade —, a visão de mundo, opções de vida. Não são “outros tempos”, mas a inexorável e interminável marcha do mercantilismo.O conceito e a ideia de lar nascem de lareira, do fogo, do fogão, do aquecimento da casa. Ao extremo, poderíamos dizer que “lar sem fogão” é apenas uma casa. No entanto, somos assim hoje: donos ou hóspedes de uma casa onde pessoas parecem não mais conviver, mas, apenas, coexistir. Cadê a mesa, que, com o fogão, era o centro do lar? A mesa das refeições, a mesa à borda da qual se conversava, mesa que era o santuário de mulheres que pariam, onde e sobre a qual repousavam os mortos velados por amigos e familiares? Sem fogão, não há mesa de refeições. Logo, o convívio converte-se em presenças artificiais. Nos pratos de comidas congeladas, lá se vão eles para diante dos televisores.Não, não são “outros tempos”. Somos nós, transformados, modificados, desumanizados, máquinas de produção. E nos rostos de cada um — nas ruas, nas casas, no trabalho, até mesmo nas diversões — a marca melancólica de uma tristeza corrosiva e, pior ainda, epidêmica.Nunca consegui esquecer-me de um entardecer gélido, depressivo, em que me vi, na adolescência, andando sozinho e tiritando de frio nas ruas centrais de minha cidade. O sino da Catedral badalara a hora do “Ângelus”. E, das poucas casas residenciais, vinha o som da 'Ave Maria', de Gounot. Senti uma solidão profunda, dolorosa, a insegurança de estar só, com todos os fantasmas de minha idade. Ao virar a esquina da rua de minha casa, eu estava como que congelado, no corpo e no espírito. Então, ao ir-me aproximando, senti o cheiro de comida, de sopa, cheiro de mãe, de família, de lar, de lareira, de morno aconchego, de segurança. O frio passou, a o cheiro de comida familiar me abraçou como se fosse um bafejo de amor.Perdoem-me os que discordarem, pois lhes respeito opiniões contrárias. Mas não acredito em lar sem cheiro de café pela manhã, sem cheiro de feijão vindo da cozinha, inundando a casa, entrando pelos pulmões. Para mim, podem ser casas maravilhosas, até mesmo de pessoas que se sentem em paz — mas não são lares. Tornam-se, a pouco e pouco, palco de tédios, de conflitos, de desconfianças, de indiferenças. Psiquiatras já detectaram que, na dramática questão de drogas entre os jovens, o índice cai vertiginosamente quando a família se reúne, pelo menos duas vezes por semana, para as refeições, sejam almoço ou jantar. Crianças e adolescentes intuem — também pelo cheiro do café da manhã, cheiro do feijão, a conversa à mesa, às vezes até acalorada — que têm um lar. E este não é o lugar onde se fica, mas para onde se volta.Tenho um enteado, em longa viagem pelo Exterior, que nos envia mensagens ou telefonemas onde nunca lhe escapa um quase pedido de socorro: “Estou com saudade da minha casa, de comida de mãe...”Viver nada tem a ver com esse loucura a que nos entregamos. É um suicídio. E coletivo. Insípido e inodoro. Mas com as cores da televisão.

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