MOACYR CASTRO

Cartas não mentem

01/09/2013 às 05:00.
Atualizado em 25/04/2022 às 03:48

Antônio Santa Gata morreu! Quem? O Tim!? Meu Deus! Silêncio no Mercadão. Agora, como fazer sua última vontade? Fizeram. Quem deixaria de atender ao pedido derradeiro do açougueiro? E todos, até fregueses de caderneta e camelôs do lado de fora, seguiram o caixão, que cruzou o mercado de ponta a ponta, entre bancas e armazéns, frutas, verduras, secos e molhados. Aquela gente que se via e se ajudava todos os dias agora se juntava para ver e se juntar à dor da perda do companheiro. Os ônibus e as últimas jardineiras partiram do largo com atraso para as cidades e distritos próximos. O gerente das Casas Pernambucanas, do Garcia (o Rei das Molas), da recauchutagem do Garbelini, do frigorífico Tavares (que vendia gelo para as primeiras geladeiras domésticas de madeira), do posto Texaco... Nardo e dona Olésia, das bancas de jornais, e Mathias Lima, o guarda. Professoras e alunos do Grupo Escolar “Correa de Mello” e do “Erasmo Braga”, também. Muitos já no céu, à espera do seo Tim, como meus padrinhos Plácido e Mariquinha Pelegrini, meus padrinhos, e Salim mais sua Yasmin Murtada, do Lineu Renato Henriques.  É o nosso ‘Mercadão’, mais importante ponto de encontro de campineiros, onde todos se sentiam iguais, juntando mendigos e deficientes, cegos, sanfoneiros, soldados e prostitutas (‘marafonas’, como escrevia Wanderley Doná, repórter de polícia do Diário do Povo), além dos primeiros pregadores da “palavra do Senhor”. Suas histórias preenchem uma biblioteca de momentos raros, ávidos por alguém disposto a contá-los. Há personagens dignos de Érico Veríssimo, García Márquez, Machado ou Eustáquio Gomes. Todos botariam Paulo Coelho pra correr, mas nenhum recusaria esmiuçar suas vidas para Benedito Ruy Barbosa, Rogério Verzignasse ou Manuel de Barros. Depois do enterro de Santa Gata, a aventura mais notável aconteceu diante de Ricardo Cecconi, filho das lendárias máquinas de trabalhar Antônio e sua Albertina, mais o irmão Waldemar, o Maninho, e seu tio Walter. Daqueles ônibus e jardineiras do Largo do Mercado e das camionetes dos sitiantes, desciam muitas pessoas humildes, que moravam longe – hoje lugares próximos – em Matão, Betel, Sumaré, Valinhos, Sousas, Moranguinho, Morungaba e Aparecidinha. Os familiares e amigos que viviam mais longe ainda mandavam suas notícias para os armazéns. Uma série de cartas inspirou uma piada que corre o país há tempos. De Betel, entrou um senhor analfabeto. Ricardo, com sua memória de manada, não se esquece, desde a primeira das quatro cartinhas marradas com barbante, em ordem de chegada: 1. Sua mãe está doente. 2. Sua mãe piorou. 3. Levamos sua mãe para o hospital. 4. Sua mãe morreu! Aquele senhor desmaiou em cima de um saco de amendoim. Pregado no poste: “Comerciantes do Mercadão são humanos e não cobram para guardar as cartas dos pobres”

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