RODRIGO DE MORAES

Carta para uma jovem violoncelista

07/08/2013 às 05:00.
Atualizado em 25/04/2022 às 06:21

Para a minha sobrinha Inanna, que está de mudança para Minas Gerais De um tio, uma sobrinha talvez espere conselhos. Mas eu, que não consigo me organizar nem para arrumar meus armários, fico assim, meio sem jeito: me desculpe, mas não me ocorre nenhum conselho para te dar.Não leve a mal, é que a vida me fez assim: todo gestos, todo metáforas e imagens bonitas. Mas, de palavras das quais se extraia alguma utilidade, algum sentido prático, nada.Sua mãe, a minha irmã, me contou pelo telefone que você estava de mudança, e não pude deixar de notar o instante em que a voz dela ficou como que suspensa, de quem sente o coração apertar até doer. Mas esse instante foi breve, e pude entender outras coisas com o telefonema que eu recebi: que esse é um passo muito importante que você dá em sua vida; que você vai se juntar a um grupo de violoncelistas, e não posso imaginar algo mais lírico que isso; que bons ventos sopram em seu caminho, porque é assim com as pessoas que seguem em busca do que querem.No domingo, assisti a mais um episódio de uma série cuja música de abertura me deixa melancólico. Na manhã seguinte, percebi, sem surpresa, que a melancolia me acompanhava. Algumas segundas-feiras atrás, o dia também foi cinzento: havia lido um livro de entrevistas com a Hilda Hilst, e depois escrevi que nunca um livro havia me derrubado daquele jeito. Noite dessas, ouvindo música, tive a certeza de ter vislumbrado tristeza de verdade na voz de Ian Gillan em 'When a Blind Man Cries'.Não sei direito por que enumerei essas coisas para te falar. Talvez porque eu saiba que você vai entender o que senti: não é tristeza, mas um sentimento mais profundo, insofismável até, de quando enxergamos algo nas entrelinhas das coisas. Do nó na garganta meio besta que nos dá, vez ou outra, ao depararmos com uma frase solta no meio de uma página, ou ouvirmos uma melodia, vinda não sei bem de onde, cortar o ar de uma tarde sem vento. Coisas com as quais tememos não saber direito como lidar, porque receamos abrir comportas e sermos tragados por uma beleza quase insuportável.Mas, eu sei, você sabe como usar isso a seu favor. Você é artista, e a sua ida a Uberlândia (poderia ser Porto Alegre, ou Nova York) tem o propósito de te aperfeiçoar em algo a que você já se entrega com tanta desenvoltura: o de traduzir para os ouvidos do homem algo que está além da linguagem, além do alcance das palavras, e que só a música dá conta de expressar.O Bernardo Carvalho, um escritor, afirmou que a grande tragédia humana é a de estarmos fadados ao fracasso em nossa luta contra o tempo e a morte, mas é no próprio fato de estarmos conscientes desse fracasso que reside a nossa salvação: por meio da arte, conseguimos desafiar a realidade (a inevitabilidade do destino) que a própria arte representa. “A redenção vem da beleza produzida pela própria consciência da condição trágica”, escreveu ele. E assim vamos vivendo.Enfim, é de coisas maiores que a vida que eu queria te falar nestas mal traçadas linhas, minha sobrinha. De coisas como a música, por meio da qual o homem transcende a sua própria limitação e finitude. Também queria te falar do espanto, do assombro que vem não de percebermos como as coisas são transitórias, mas do milagre que representa o fato de nos ter sido concedido vivê-las e experimentá-las. E isso quase me provoca lágrimas de alegria.Um beijo de seu tio.

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