Opinião

Carolina Scoz: Inventário amoroso

Carolina Scoz
27/09/2018 às 20:42.
Atualizado em 22/04/2022 às 00:23

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Tinha chegado ao fim, ela sabia. Por isso precisava esquecer. Leu certa vez que as lembranças ressurgem diante de pistas mnemônicas. São evocadas, definia o pesquisador Iván Izquierdo (aliás um nome que ela jamais esqueceria: Ivan foi seu primeiro gato, companheiro de solidão na infância). Estamos distraídos até que uma coisa à toa leva nossa mente para um episódio que imaginávamos apagado. Voltamos a sentir – um pouco menos, é verdade, mas a recordação está latente, num lugar escuro e atemporal onde pode, a qualquer momento, reacender sua chama. Basta uma tênue faísca. Por isso decidiu fazer um inventário de palavras, como uma lista de bens patrimoniais – mas não para assumir a posse. Ao contrário, listava para destituir de valor, depreciar, depredar. Anular os sentimentos fundidos a acontecimentos. Lembraria dele apaticamente. Avistaria ao longe no corredor do shopping e seu coração pulsaria inalterado. Ele seria qualquer um. Amor - Ele gostava de citar trechos de poemas do Drummond. “Na curva perigosa dos cinquenta derrapei neste amor”, ou “O amor bate na porta, o amor bate na aorta...”, ou, ainda, “Que pode uma criatura, senão, entre criaturas, amar? Amar e esquecer, amar e malamar, amar, desamar, amar? Sempre e até de olhos vidrados, amar?” Parecia aficionado por poemas que usassem a palavra amor, embora ele próprio nunca tivesse conjugado o verbo para ela em primeira pessoa: “Eu te amo”, “Eu te amarei pela vida afora”, “Eu te amaria até debaixo d’água”, frases desse tipo. Lembrar da palavra amor incitava desconfiança: Será que ele realmente me amou? Preferiu livrar-se de Drummond ao invés de viver ruminando essa questão irrespondível. Seu querido poeta mineiro estava banido do armário de livros. Café, chá, canja - Havia prometido que se reencontrariam quando ele estivesse no Rio de Janeiro. Sugeriu a Confeitaria Colombo, lugar majestoso e tradicional erguido no centro da cidade. Poderia ser chá. Ou canja à noite. Não era necessário que rompessem, afinal indivíduos maduros conseguem ser bons amigos quando uma relação termina. Por alguma razão ele nunca mais voltou a falar sobre esse vago convite, embora continuasse trabalhando ocasionalmente no Rio de Janeiro (ela tinha como saber). Foi um duro golpe, repetidas vezes. Não queria mais lembrar de Confeitaria Colombo, portanto evitaria lembrar de Cristovão Colombo e, inclusive, Colômbia, país cujo nome é uma homenagem ao navegador-explorador-genocida. Doida - Palavra trivial se usada como sinônimo de louca, biruta, maluca, pirada. Foi ele quem reinaugurou o uso de doida, atribuindo um sentido que raspava por completo as tintas depreciativas. “Você é doida” sempre queria dizer “você me faz rir como ninguém mais nesse mundo”. Era comovente. Fernando Pessoa - Costumava enviar textos jamais escritos pelo poeta português. Ela nada dizia; não queria constrangê-lo, acusando sua falta de conhecimento literário. A verdade é que gostava daqueles poemas de amor rasgado e intenso. Não importava se quem tivesse escrito fosse o próprio Fernando Pessoa ou um anônimo trovador da internet. Gioconda - Na única vez que estiveram em Paris, insistia que era impreciso chamar de Mona Lisa a famosa pintura de Leonardo da Vinci se o nome original era Mona Lisa ou La Gioconda. Na ocasião ela divertiu-se com aquele rigor desnecessário, sem perceber o radicalismo que depois se revelaria quase insuportável nos anos em que moraram juntos. Nunca mais achou tanta graça naquele homem que tinha a palavra final sobre qualquer assunto e que, portanto, não recuava mesmo se ela dissesse com jeitinho “querido, isso não faz diferença...”. Hera - Não aceitou esse apelido. Pediu que ele parasse de repetir. Evoluiu da solicitação educada ao choro descontrolado. Afinal, Hera foi trapaceada. Recusou o amor de Zeus, intrépida, durante 300 anos. Por fim cedeu quando ele magicamente transformou-se num pássaro que, para se proteger da chuva, aninhou-se entre seus seios. Encantada e apaixonada pela pequena ave, era tarde demais para resistir ao deus mulherengo - por toda a eternidade, viveria atormentada, perseguindo amantes do marido e filhos bastardos. Ninguém deseja para si o destino de Hera. Por isso evitaria pensar em Mitologia Grega, Ilhas Gregas, Arroz à Grega – qualquer referência à Grécia. Latte - Achou que fosse brincadeira quando ele enfatizou para o garçom, dizendo a frase pausadamente: “Eu quero um Latte, não um leite com café”. Tinha convicção de que ao dizer Latte o leite com café vinha fumegante e cremoso já que a pronúncia italiana criava uma atmosfera gastronômica. Pura superstição, fruto de coincidências. O problema central em concordar com isso era o malentendido nas padarias: quase sempre a moça do balcão franzia a testa e, ao final, era preciso traduzir: “Latte é o nosso pingado, só que bem quentinho e espumoso, sabe?” Palavra esnobe e ineficiente; nunca mais queria pronunciar Latte, nem se estivesse na cafeteria mais chique da Itália. Pediria água com gás e café expresso. Decidido. Menos lembranças e, de quebra, menos calorias. Pistilo - Quando ela comprava lírios brancos, sem dúvida alguma sua flor predileta, ele advertia que os pistilos são tóxicos para gatos. Era inegavelmente altruísta que ele se preocupasse com o gato dela – logo ele que tinha alergia; sobretudo tinha preconceito. Mas ela gostava de ouvir pistilos, de algum modo o som remetia à delicadeza de coisas efêmeras: talco, nuvem, borboleta, chantilly. Dizer pistilo o fazia parecer um homem amoroso, incomum, perfeito para ela. Um homem que jamais a machucaria com traição ou frieza. Quando jurou a si mesma que desistiria para sempre dessa ilusão romântica, começou abolindo pistilo. Rotatória - Durante 180 quilômetros de engarrafamento até Búzios em plena véspera de carnaval, ele mostrou cada ocorrência de rotatória, para frisar que balão estava incorreto. Ficou claro naquele percurso que ele preferia termos vernáculos, presentes em dicionários da língua portuguesa. Ela preferia nomes divertidos - balão, por exemplo. Ele dizia viaduto, ela ponte. Ela dizia cataventos gigantes, o que para ele era inadmissível quando aquilo se tratava de uma moderníssima estação de energia eólica. Uva - Desde menina gostara de uva, a fruta. Qualquer uma. Verde ou vermelha. Sem sementes ou aquelas da ceia de Natal. Nunca imaginou que existisse um complexo universo de uvas, safras e vinícolas. Pinot, Sauvignon, Merlot, Cabernet, Sirah, Tannat, Chardonnay – bonitos nomes para gatos, ela pensava. Nem sabia que escolher um vinho num restaurante exigia um longo ritual de degustações e esclarecimentos até a decisão final. Por sorte Champagne era muito diferente de outros vinhos. Translúcida e borbulhante, nem parecia feita de uva. Para sempre pediria Champagne.   Um inventário amoroso não termina. Para sempre tentaria inutilmente esquecer.

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