Quem via aquele folião aos pulos no salão, de bermuda colorida, camisa regata, colares no pescoço, nunca iria imaginar que, por trás de tanta euforia, “na maior felicidade”, escondia-se uma pessoa atormentada. Todos riam, ele ria, o martelinho de plástico brandia nas cabeças mais próximas, impiedoso, descompromissado. Alegria, alegria deveria ser a palavra de ordem na última noite de carnaval. Mas — que pena! —, não era: um drama o envolvia a cada passo de seu bailado insensato, ensandecido, um segredo que ele carregava com ele, só com ele.
No intervalo, a orquestra entoou em surdina Maria, Carnaval e Cinzas de Luiz Carlos Paraná, que começava com “Nasceu Maria, quando a folia, perdia a noite, ganhava o dia. Foi fantasia seu enxoval, nasceu Maria no Carnaval”. A música destoava dos sorrisos, dos delírios de tudo ali, trazendo clara a imagem de sua vida: sem emprego, sem teto, o mundo caindo à sua volta e, agora... Maria nascia no Carnaval.
Já cansado, meio bebum, de repente avistou no meio do salão uma antiga amiga, de cílios longos e óculos de fantasia. Correu para ela: enfim, um bom momento naquela noite de tanta amargura. Chamou-a pelo nome, sem ser ouvido. Acercou-se dela, e gritou nos seus ouvidos: — Ei! Está bonita! Como vai?
— Vou bem, e você?
Mas, quando ela levantou os óculos, assentando-os na testa, surpresa!
Como estava diferente: só rugas, fios brancos e molhados de suor, toda marcada pelos anos. Aqueles olhos negros, insinuantes, o rosto de pele sedosa e cor de jambo, os cabelos curtinhos... Para onde foram?
A orquestra atacou: “Confete, pedacinho colorido de saudade, ai, ai, ai! Confete, confesso que chorei”, e ele caiu na realidade: esquecera-se de que o tempo passara, célere.
Depois de uns chopinhos no barzinho do salão, alguém o chamou: — Oi! Tudo bem?
— É, vamos indo. E você?
— Na maior. E o pessoal lá, continua animado? Aquela turminha, hein? Qualquer dia apareço lá. Bem, vou nessa. Dá um abraço em todos, ok? — e saiu gingando pelo salão.
O rapaz do caixa, conhecido dele, perguntou surpreso: — Quem é esse aí?
— Não faço a mínima ideia.
Pagou a conta e voltou para o salão, cantando consigo mesmo, “A turma lá de trás gritou: chi! tem nego bebo aí, tem nego bebo aí”.
No meio da noite, saiu para respirar o ar da madrugada: andou pela frente do salão ricamente ornamentado, depois, encostou-se no portão de entrada, observando a rua vazia.
Ouviu a orquestra lá dentro: “A estrela d’alva no céu desponta, e a lira anda tonta com tamanho esplendor. E as pastorinhas pra consolo da lua vão cantando na rua lindos versos de amor”.
Aí, percebeu que alguém examinava com atenção o busto do ex-presidente do clube no meio da pracinha, logo em frente ao prédio. Foi chegando devagarinho, meio sem graça, respondeu ao seu cumprimento cordial: o homem, agora, passava as mãos habilmente pela escultura, detinha-se em detalhes, olhava-a de frente e de lado, avaliava a conservação da obra.
Mais tarde, já de volta ao salão, surpreendeu-se com um pensamento: ele conhecia aquele senhor ao lado da escultura, com seus óculos de lentes bifocais, cabelos ralos, ar enérgico e jeito de artista. Constatava emocionado que, nada mais, nada menos, estivera ao lado do próprio autor da obra. Mas ele não tinha morrido? Creditou tudo às bebidas já na cabeça.
Seguiu em frente, ainda havia muito carnaval naquela noite. Acabou encontrando os seus amigos de sempre, bebeu mais, e com eles, dividiu suas mágoas. Escondeu-se naquela falsa alegria, quando a orquestra entoou “Ô abre alas, que eu quero passar. Sou da lira não posso negar”.
Alta madrugada, largou tudo e foi embora. Quando se apagavam as luzes, limpava-se o salão no fim do baile, jogou os colares na calçada e, em plena quarta-feira de cinzas, com os problemas da sua vida já retornando todos — Maria que nascia no carnaval —, desceu pela rua deserta, desiludido. Com os olhos semicerrados, pensativo, cantarolava baixinho a música triste do baile:
“Pobre Maria, jamais a vida lhe sorriria. E nunca viria de porta estandarte, sambando com arte, puxando cordões. E não estaria em plena folia, nos olhos e sonhos de mil foliões”.