Projeto de lei quer obrigar funcionários a realizarem exames toxicólogicos a cada dois anos; especialistas debatem se projeto é constitucional
Nelson Hossri, do PSD, defende que o projeto é legal e que é fundamental que os ocupantes de cargos públicos atuem com responsabilidade e sobriedade; especialistas entendem que o projeto de lei, se aprovado, pode ferir a intimidade dos servidores e a presunção da inocência (Kamá Ribeiro)
Um projeto de lei complementar em tramitação na Câmara Municipal de Campinas quer obrigar a realização de "testes antidoping" para todos os servidores públicos municipais, considerando a Prefeitura, a Câmara e as autarquias e empresas públicas do município. Caso aprovado, exames toxicológicos precisarão ser feitos a cada dois anos pelos funcionários concursados, comissionados e também pelas autoridades eleitas, como os vereadores e até o prefeito, Dário Saadi (Republicanos), e o vice-prefeito, Wanderley de Almeida (PSB). A proposta de autoria do vereador Nelson Hossri (PSD) prevê ainda punições que podem ser aplicadas a quem testar positivo nos exames. Na primeira ocorrência, o servidor seria advertido. Na segunda, suspenso por 30 dias. No caso de mais um teste positivo, ele seria demitido.
Especialistas ouvidos pela reportagem do Correio Popular, no entanto, apontaram traços de inconstitucionalidade no texto submetido à Câmara, como a violação da intimidade dos servidores, da isonomia entre os poderes Executivo e Legislativo e da presunção da inocência.
O Projeto Complementar n˚ 48/2025, apresentado em 19 de maio e com uma correção protocolada quatro dias depois, estabelece que os exames toxicológicos deverão detectar o consumo, ou não, de substâncias psicoativas detalhadas na Resolução n˚ 923/2022 do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), em um período anterior mínimo de 90 dias. Na resolução, são citadas anfetaminas, canabinoides, cocaína e opiáceos como exemplos.
A proposta detalha que é garantido o direito de contraprova e recurso administrativo, no caso de resultados positivos, além da disponibilização de apoio e assistência integral para orientação e tratamento. Também é assegurada a privacidade e confidencialidade, segundo as normas da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
Por fim, o projeto define que todos os custos com os exames de todos os servidores públicos do município de Campinas serão pagos pela Administração Pública. Caso os funcionários em questão usem medicamentos que contenham alguma das substâncias ou derivados citados no texto enviado à Câmara, eles precisarão apresentar prescrição ou laudo médico que comprove a necessidade do uso desses produtos.
Na justificativa do projeto, Hossri explicou que é fundamental que as pessoas ocupantes de cargos públicos e remuneradas pelos contribuintes campineiros atuem com responsabilidade e sobriedade, e que a iniciativa é uma resposta à necessidade de promover um ambiente de trabalho saudável e seguro no serviço público. “Quem tem o poder de decidir pelo povo deve, no mínimo, estar em plenas condições físicas, psíquicas e éticas para exercer esse papel. Mais do que uma questão de saúde, é uma questão de responsabilidade social e moral”, argumentou.
O parlamentar foi questionado sobre alguns pontos que não estão explícitos no projeto de lei. Um deles é como funcionaria uma eventual punição aos políticos eleitos, como os próprios vereadores, o prefeito e o viceprefeito. Hossri sugeriu que uma Comissão Processante poderia ser aberta pela Câmara para investigar, e até cassar o mandato, autoridades eleitas que descumprirem a legislação, caso ela seja aprovada. No entanto, ele não descartou eventuais mudanças no texto protocolado na Casa de Leis. “Agora o projeto será debatido nas comissões e no Plenário, podendo receber emendas se for o caso.”
O Correio Popular apurou que a proposta está em análise pela Coordenadoria de Processo Legislativo (CPL) da Câmara para a definição de quais comissões terão de avaliar o projeto de lei complementar. A Prefeitura e a Câmara de Campinas preferiram não se manifestar sobre o assunto. O Sindicato dos Trabalhadores do Serviço Público Municipal de Campinas (STMC), que representa os servidores municipais da cidade, também foi procurado pela reportagem para comentar o tema, mas não houve resposta até o fechamento desta edição.
INCONSTITUCIONAL
O juiz aposentado Julio Ballerini, professor de pós-graduação em Direito Civil e Processo Civil em instituições de ensino como a Escola Superior de Advocacia (ESA) e a Escola Superior de Direito (ESD), destacou que não há um entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) a respeito desse tipo de assunto. Na visão dele, se o Poder Judiciário for provocado sobre a proposta em tramitação na Câmara de Campinas, a tendência é que em última instância ele seja declarado inconstitucional.
“Há uma tendência de que os tribunais intermediários, como o Tribunal de Justiça de São Paulo, sejam favoráveis à constitucionalidade devido à causa do bem do serviço público. No entanto, se esse assunto chegar aos tribunais superiores, como o Superior Tribunal de Justiça ou o STF, esse tema deverá ser declarado inconstitucional devido à possibilidade de essa lei ferir a intimidade dos servidores, a violação da isonomia dos poderes, do Legislativo entrar em competências do Executivo, entre outros pontos. A Câmara certamente tem uma assessoria jurídica que deve, talvez, modificar o projeto na forma que ele está, reduzindo o seu escopo para quem lida diretamente com segurança, como a Guarda Municipal”, exemplificou.
A possibilidade citada por Ballerini já é aplicada em Campinas. A Guarda Municipal realiza testes toxicológicos no momento da admissão de novos agentes que passam nos concursos públicos da corporação. Outro exemplo vem da Empresa Municipal de Desenvolvimento de Campinas (Emdec), que fiscaliza a documentação dos motoristas das categorias C, D e E. Eles precisam comprovar resultado negativo em exame toxicológico para a obtenção e a renovação da Carteira Nacional de Habilitação (CNH).
O advogado Affonso Pinheiro, especialista em Direito do Consumidor e Direito de Família, pós-graduado em Direito Processual Civil, acredita existir relevância no mérito do projeto apresentado pelo vereador Nelson Hossri, mas também avaliou que pontos de inconstitucionalidade estão expostos na proposta em tramitação. Pinheiro, que foi coordenador do Procon de Campinas na gestão do ex-prefeito Chico Amaral e relator do Tribunal de Ética da Ordem dos Advogados em Campinas, além de assessor jurídico da Câmara de Campinas, lembrou que não existe uma lei federal em torno do assunto. A proposta mais parecida com a de Campinas é o projeto de lei ordinário n˚ 543/2019, do deputado federal Giovani Cherini (PR), que está parado na Câmara dos Deputados
“É preciso tomar muito cuidado para falar sobre esse tema. Esse projeto, em minha opinião, precisa ser específico para os profissionais que tratem diretamente com a vida humana. Por exemplo, eu vejo como dispensável que assistentes administrativos se submetam a esse tipo de teste. Sob o ponto de vista constitucional, vejo que ele fere o princípio da presunção de inocência. Ou seja, o princípio que ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo”, comentou.
O contraponto veio do advogado e secretário da Comissão de Direito do Trabalho da OAB Campinas, Cyro Fernando Vallões Alves. Ele pontuou que o projeto deverá ser avaliado de uma forma mais ampla pela Câmara antes da conclusão de uma inconstitucionalidade da proposta em tramitação, mas disse não identificar, em uma primeira análise, que o projeto contrarie a Constituição Federal. “Os eventuais traços de inconstitucionalidade precisarão ser corrigidos para que esse tipo de projeto possa avançar”, concluiu.
Questionado sobre os apontamentos dos especialistas, o vereador Nelson Hossri disse que o projeto é legal e alegou que a Procuradoria da Câmara concedeu parecer favorável à proposta.
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