CAMPINAS

Usuários de crack buscam refúgio em bairros

Operação Centro Seguro, da Guarda Municipal, tem provocado a migração de dependentes

Felipe Tonon
10/11/2013 às 10:06.
Atualizado em 26/04/2022 às 12:12

“Está todo mundo com medo. É igual cachorro, que quando apanha fica escondido atrás do muro.” A frase é de um dos poucos usuários de crack que ainda frequentam a região do Viaduto Cury, no Centro de Campinas, e reflete uma mudança na rotina das pessoas que tinham na região central um local livre para o tráfico e o consumo de entorpecentes. Desde o fim de setembro, com o início da operação Centro Seguro, promovida pela Guarda Municipal, a permanência dessas pessoas, que antes eram vistas circulando em grupos pela região a qualquer hora do dia, diminuiu. Comerciantes do Centro aprovaram o resultado, mas têm dúvidas do paradeiro dos usuários, que também não são mais vistos no trecho da linha férrea que corta o viaduto. Especialistas apontam que a tendência é que essas pessoas tenham migrado para regiões onde terão como mendigar, mas não muito afastadas dos locais onde estão habituados a comprar as drogas e dos equipamentos públicos, como a Casa da Cidadania e o restaurante popular, instalados no Centro, onde conseguem comida, roupas e cobertores, por exemplo.A pulverização dos usuários se estende, segundo especialistas e a própria Guarda Municipal, a bairros próximos no Centro, como Jardim Proença, Botafogo, Ponte Preta, Guanabara, Cambuí e Guarani – alguns desses bairros podem ser acessados pela linha férrea.Para Nelson Hossri Neto, coordenador na cidade do programa Cartão Recomeço, que cuida do tratamento de vítimas de drogas, a migração dessas pessoas na cidade “é natural” em momento de maior atuação do poder público. Ele citou o aumento no número de moradores de rua no Cambuí e na região do Jardim Proença. “Algumas regiões também possuem conhecidos pontos de tráfico, como os bairros São Fernando e Paranapanema, que atraem usuários.”De olho nesse comportamento, a GM informou que monitora os bairros adjacentes e que as ações iniciadas no Centro serão estendidas.O Correio também conversou com usuários que relataram o desejo de deixarem a cidade, o que já teria acontecido com algumas pessoas que viviam na região central, segundo relatos.Durante quase duas horas a reportagem conversou com um grupo de aproximadamente dez usuários que estavam reunidos em frente à Casa da Cidadania, que abre às 17h para os moradores de rua tomarem banho.Um deles portava uma pochete e comercializava pedras de crack. A presença de um estranho entre eles afastou alguns. “A gente não tem mais paz nem pra fumar uma pedra”, disse um jovem. Mas para a maioria deles, conversar com uma pessoa desconhecida serviu para desabafar.A.R.F. , de 39 anos, tem quase dois metros de altura. Morador em Campinas, pedia um cachimbo emprestado para fumar mais uma pedra de crack, que havia comprado por R$ 5. Ele não soube dizer quantas ele já tinha consumido naquele dia. Sobre o sumiço dos usuários do Terminal Central, o segurança, que disse estar afastado do trabalho, criticou a postura da GM. “Não adianta ficar atrás dos viciados. Tem que pegar os traficantes. A gente tem que ser abordado, mas com calma”, disse, afirmando que a guarda age com truculência. Na sequência, ele ponderou. “Tem alguns viciados que abusam e prejudicam os outros. Xingam os policiais. Acham que podem ofender a polícia, existe o outro lado também.” Olhos arregaladosCom os olhos arregalados e observando o movimento ao redor como se alguém pudesse surpreendê-lo a qualquer momento, afirmou ser vítima e não conseguir deixar o vício. “Ninguém está aqui porque quer. O crack, a cocaína, a maconha, o LSD só têm um nome: droga. O crack a gente vicia mais rápido, acaba uma pedra a gente quer duas. E perde o amor próprio, perde a família. É muito difícil. Quando a coisa aperta eu volto para minha família, fico 15, 30 dias sem usar, trabalho. Mas agora estou aqui.” Para ele, a volta dos usuários ao Cury é uma questão de tempo. “Muita gente sai, mas volta. As pessoas se acostumam com o ambiente, com o lugar”, disse o homem, que negociava mais uma pedra de crack. “Uma pedra custa R$ 10, mas aí vai da amizade que você tem com quem vende. Às vezes consigo um pedaço por R$ 5, até R$ 3.”]“Aqui não tem bandido. Tem usuário de droga”, disse um deles. A opinião foi compartilhada por uma mulher de 45 anos, que, sem dinheiro, pedia para dar uma tragada no cachimbo de um dos membros do grupo. “Eu quero usar crack, eu escolhi isso, só não pode roubar ninguém.”Pesquisa Um profundo mergulho na vida de usuários de crack. Essa foi a proposta da antropóloga Taniele Rui, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, que durante dois anos e meio conviveu com essas pessoas na cracolândia, em São Paulo, e em regiões de Campinas, como a linha férrea que corta o Centro da cidade. Do trabalho de doutorado surgiu a tese Corpos Abjetos: Etnografia em Cenários de Uso e Comércio de Crack, estudo que conquistou em 2013 o Prêmio Capes de Tese na categoria Antropologia/Arqueologia.Usuário prepara cachimbo em terreno no Jardim Brasília, em Campinas: crack ganhou visibilidade e combater o consumo virou alvo de governosCréditos: Camila Moreira/ AANO trabalho é um denso relato autoral com mais de 300 páginas. Uma espécie de diário que aborda o consumo da droga a partir de uma perspectiva sociocultural. Ao todo, foram cinco anos de estudos entre pesquisas, o trabalho de campo e a defesa da tese, no ano passado. O tema sempre acompanhou os estudos da antropóloga, que já atuou como educadora social de rua entre 2004 e 2007 e fez mestrado sobre uso de drogas entre crianças e adolescentes em situação de rua. “Procurei um modo de estar próxima das experiências de consumo para entendê-las na sua complexidade. Para tanto, contatei equipes que fazem o trabalho de redução de danos em cenários diversos de uso de drogas, inicialmente na cidade de Campinas, depois em São Paulo. Enfocar a questão do crack foi consequência dessa trajetória, antes mesmo de o assunto ter a visibilidade que possui hoje.”Em São Paulo, ela esteve próxima de dependentes químicos que frequentavam a antiga cracolândia, no bairro da Luz. Em Campinas, foram diversos locais visitados, becos, casas abandonadas, linhas de trem e galpões desocupados situados nos bairros Paranapanema e São Fernando. “Visitei vários lugares seguindo mapeamento do então Programa de Redução de Danos, que hoje não existe mais nos moldes que eu pesquisei. As atividades se realizaram em bairros periféricos e na região central, além das extensões de trilhos e galpões abandonados. Imagino que os cenários de consumo tenham se diversificado desde então.”Para se aproximar dos usuários, Taniele contatou programas públicos que já atuavam com essa população e estabeleceu um rotina de trabalho e locais de observação. De desconhecida, acabou se tornando uma pessoa de confiança entre os usuários, cumprindo um dos objetivos da pesquisa: interagir ativamente com os usuários. “Eu desenvolvi laços afetivos bastante intensos tanto junto às equipes com as quais trabalhei quanto junto aos usuários de crack.”Durante o doutorado, em 2010, ela teve de se afastar das ruas para fazer um estágio doutoral de quatro meses na Universidade de Lisboa, em Portugal. De volta ao Brasil, teve uma surpresa. “Em um dos locais mais visitados, me lembro de uma usuária que saiu correndo de onde estava para me dar um abraço muito apertado, dizendo que sentiu muito a minha falta. Eu retribuí com alegria e fiquei comovida porque também tinha sentido o mesmo. Esse era o sinal de que a pesquisa estava sendo bem feita.”Na produção da tese, ela viu o fim da cracolândia paulistana durante uma ação policial que expulsou os usuários do local. “Enquanto escrevia, acontecimentos se sucederam: o crack ganhou notabilidade, as disputas por terapias, bem como os debates em torno da internação compulsória, se acirraram e, principalmente, no início de 2012, quando o texto estava quase concluído, um dos cenários onde fiz a pesquisa, a “cracolândia” paulistana, foi alvo de violenta operação policial que visou não o cuidado dos usuários, mas a retomada de um espaço da cidade. Meditei sobre adicionar (ou não) esse último acontecimento à reflexão. Acompanhei todo o noticiário, (...), paralisei a escrita por todo o mês de janeiro e sozinha, em silêncio, chorei.”Taniele decidiu não falar da chamada Operação Sufoco, mas mandou recado. “Ao respeitar a temporalidade da pesquisa, fiz diferente do que fez a polícia, o governador e o prefeito: não tentei matar por asfixia e à força a ‘cracolândia’. Nessas páginas, ela e os outros lugares de uso que visitei respiram, vivem. Os usuários de crack e os que estão ao redor deles manifestam seus pontos de vista.”Comerciantes Apesar de aprovarem as ações implementadas recentemente pela Guarda Municipal, alguns comerciantes do entorno esperam que a medida não seja paliativa. Para Maria de Fátima Souza, “o trabalho do Centro é bom”, mas fez uma ressalva.“Caiu bastante (a presença de usuários de drogas), mas foram para outros lugares que já vi. Tem que atender toda a cidade. A GM está aqui agora, e tem que continuar em caráter definitivo para não voltarem mais”, afirma.Danilo Trindade tem uma empresa na Avenida Moraes Salles e apontou um dos locais onde ele percebeu aumento de usuários. “Eles foram para a área da rodoviária. Só estão jogando para o outro lado. Estão dispersando, mas não está acabando com o problema. Não se tem um plano para fazer a recuperação dessas pessoas”, diz.Proprietário de uma banca de verduras sob o Cury há mais de 20 anos, João Carlos de Lima está otimista. “O que estou observando é que um número menor deles aparece por aqui, mas não fica abordando todo mundo, pedindo dinheiro. Está no caminho certo. Vai ser bom para todo mundo e eu acho que eles tendem a voltar para a cidade de origem”, afirma. “Estamos vivendo a melhor fase. Ainda tem alguns pedintes, mas muito pouco. Antes era todo hora”, diz Fátima Doreto Cucculi, que trabalha no Cury há 15 anos.Homens fumam crack perto do Viaduto Cury, em frente a local onde conseguem comida: ocupação persisteCréditos: Camila Moreira/ AANO balanço anual da Secretaria de Cidadania, Assistência e Inclusão Social feito em fevereiro mostra que 601 pessoas vivem nas ruas de Campinas. Dessas, 347 estavam instaladas na região central. O levantamento também mostrou que 76% do total afirmaram ser viciados em álcool e outras drogas e 232 usuários relataram ser dependentes do crack. Um novo perfil dessa população será traçado apenas no início do próximo ano.Campinas é uma das três cidades do Estado que possuem o Cartão Recomeço, programa federal instituído em setembro que financia o tratamento de dependentes químicos em comunidades terapêuticas. De acordo com Nelson Hossri Neto, coordenador do programa na cidade, o número de moradores de rua viciados em drogas tende a diminuir. “É uma população dinâmica. Hoje ele está em Campinas, amanhã em outra cidade. Com as políticas implementadas a tendência é reduzir o número de pessoas em situação de rua.”De acordo com último balanço da Coordenadoria de Prevenção às Drogas de Campinas, que gere o programa federal na cidade, 197 pessoas já foram atendidas em apenas um mês e meio de atividades. Desses, 55 estão em tratamento em comunidade terapêutica e outros 142 foram encaminhados à rede de Saúde e Assistência para passarem por exames médicos. Depois, entram na fila de encaminhamento. Atualmente, Campinas disponibiliza 100 vagas de internação.Leia mais nas edições do dia 10/11 dos jornais do Grupo RAC 

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