Objetivo é corrigir o problema no gene que é defeituoso dentro das células do paciente, diz Fabio Papes (Fulvia Dipillo)
Um estudo feito em parceria por cientistas brasileiros da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade da Califórnia San Diego, nos Estados Unidos, buscou desvendar o mecanismo causador da síndrome de Pitt-Hopkins, disfunção neuropsiquiátrica que tem características de transtorno do espectro autista (TEA). O grupo também testou em laboratório terapias genéticas (ou gênicas) para corrigir mutações no gene TCF4, que estão relacionadas não apenas à Pitt-Hopkins, mas a várias condições neurológicas e psiquiátricas. O estudo foi publicado em um artigo no conceituado periódico científico Nature Communications e pode abrir novas possibilidades de tratamento para os transtornos do espectro autista.
"A terapia genética tenta corrigir o defeito genético, o problema no gene que é defeituoso dentro das células dos pacientes. Alguns tipos de autismo, como esse estudado, têm um defeito em um gene específico. A terapia busca corrigir esse problema. As crianças com tipo de autismo que estudamos não desenvolvem a fala, não têm capacidade de se locomover sozinhas, têm um atraso cognitivo profundo, além de outras características que causam sofrimento a elas e às famílias. O desenvolvimento de terapia para essa doença é algo muito importante para a sociedade", explicou o professor do Instituto de Biologia da Unicamp e pesquisador do Centro de Química Medicinal da mesma universidade, Fabio Papes. Ele também foi um dos coordenadores do estudo.
Estima-se que uma a cada 30 mil crianças nascidas possua a síndrome de Pitt-Hopkins, mas o gene TCF4, causador da síndrome e estudado nesse trabalho, também é associado à esquizofrenia e ao transtorno bipolar. "Ainda não se entende muito bem como funciona o gene no caso dessas outras doenças, mas a estratégia que desenvolvemos para o autismo poderá, um dia, ser empregada para todas as doenças que são associadas a esse gene, aumentando o número de pessoas favorecidas por essa metodologia", exaltou Papes.
Como os estudos foram feitos em laboratório, ainda é preciso esperar alguns anos até as novas abordagens de tratamento estudadas estarem à disposição da sociedade.
A expectativa é de que, em cinco anos, comecem os testes clínicos em seres humanos com voluntários. Em até 10 anos, pacientes poderão começar a ser beneficiados. De acordo com o professor, esse é o tempo normal de desenvolvimento. Ele, inclusive, citou as vacinas contra a covid-19 como exemplo de esforço coletivo do mundo inteiro para combater uma emergência sanitária e que acelerou o processo de criação, mas que normalmente o tempo de desenvolvimento é este.
Terapias genéticas
O trabalho para testar os tipos de tratamento foi feito em laboratório com uma metodologia moderna: o desenvolvimento de organoides do cérebro. Eles são uma espécie de miniversão do cérebro humano dentro de um tubo de ensaio. Eles são cultivados em laboratórios a partir de células humanas do próprio paciente. O professor Papes explicou o procedimento.
"As crianças com esse tipo de autismo vieram à Unicamp, onde um médico dermatologista coletou um pedacinho da pele do braço, uma pequena biópsia. Essas células da biópsia do braço foram colocadas em um tubo de ensaio para fazer com que elas começassem a crescer dentro do tubo e se multiplicar. Depois disso, as células foram transformadas em miniversões de cérebro no tubo de ensaio, como se fosse um pedacinho do tecido nervoso, mas feito com as células das próprias crianças. Isso chamamos de organoide cerebral.”
Fabio Papes também explicou o problema no gene TCF4 e como o tratamento pretende corrigi-lo. "Cada gene do ser humano, para ele funcionar, precisa ter duas cópias presentes nas células, uma herdada do pai e uma da mãe. O problema nas crianças com esse tipo de autismo é que apenas um desses genes funciona direito, o outro é defeituoso, tem alguma mutação."
Para corrigir esse defeito, a estratégia mais promissora dentre as estudadas é a inserção de uma cópia extra do gene dentro das células. Com isso, seriam três cópias em cada célula do paciente, sendo que a cópia extra é funcional, de modo que as células teriam duas cópias funcionando corretamente.
"A principal célula do cérebro das pessoas é o neurônio, uma célula que é capaz de transmitir sinais elétricos como se fosse uma rede elétrica. O que fizemos foi mostrar que as células dos pacientes não transmitem sinais elétricos de maneira apropriada, mas a célula submetida à terapia gênica volta ao normal."
Outras duas possibilidades foram testadas, uma que envolve a tentativa de fazer com que a cópia do gene funcional passe a expressar mais proteína, compensando a cópia afetada pela mutação causadora da Pitt-Hopkins. Essa técnica ficou conhecida como CRISPR-Cas9 e suas criadoras ganharam o Prêmio Nobel de Química em 2020.
Com as intervenções, os organoides passaram a crescer normalmente e tiveram um aumento da proliferação das células progenitoras, que no cérebro dão origem a diferentes tipos de célula, inclusive neurônios. Além da terapia genética, foi testada uma droga usada em estudos com células tumorais, entretanto, a terapia gênica teria a vantagem de resolver o problema na origem.
A pesquisa agora deve avançar para estudos pré-clínicos e clínicos. Os pesquisadores fecharam parceria com uma empresa especializada em terapia gênica, que está licenciando a tecnologia usada nos experimentos para que, futuramente, possa ser testada em humanos.