VALOR DO CONEHCIMENTO

Unicamp é 'mãe' de empresas que geram R$ 8 bilhões

Empresas formadas por ex-alunos expandem e injetam recursos volumosos na economia da RMC

Correio Popular
15/02/2021 às 11:34.
Atualizado em 22/03/2022 às 01:01
O campus da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), polo irradiador de projetos de incubação de empresas que resultam em grupos econômicos lucrativos, com a gestão de ex-alunos (Divulgação/ Prefeitura Municipal de Campinas)

O campus da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), polo irradiador de projetos de incubação de empresas que resultam em grupos econômicos lucrativos, com a gestão de ex-alunos (Divulgação/ Prefeitura Municipal de Campinas)

O físico Marcelo Knobel deixa a Reitoria da Unicamp no próximo mês de abril, depois de cumprir um mandato de quatro anos. Nesse período, ele enfrentou uma sucessão de crises sem precedentes, inclusive a maior de todas, que ainda está em curso e que foi provocada pela pandemia de covid-19. Apesar das dificuldades, Knobel considera que a experiência administrativa valeu a pena, pois pode deixar um legado que considera importante para a sequência do desenvolvimento acadêmico, científico e institucional da universidade. Instigado a citar quais foram suas principais realizações, o docente, que tem na cozinha sua válvula de escape, não se faz de rogado. "Vou entregar a Unicamp com as contas equilibradas ao meu sucessor. Quando assumi, a instituição gastava 17% a mais dos recursos orçamentários", exemplifica.

O físico Marcelo Knobel

Knobel também se orgulha de ter criados novos formas de ingresso nos cursos de graduação além do tradicional vestibular, o que promoveu a inclusão de grupos tradicionalmente sub-representados da vida universitária, como negros, índios e estudantes oriundos de escolas públicas. Prestes a deixar a função, o reitor entende que a Unicamp deve continuar mantendo o compromisso de devolver à sociedade, de forma multiplicada, os investimentos nela feitos.

Uma de suas apostas nesse sentido é a implantação do Hub Internacional de Desenvolvimento Sustentável (HIDS), que funcionará como um bairro de empresas, universidades e instituições de pesquisas comprometidos com a transformação do conhecimento em processos e produtos que favoreçam o reuso da água e estimulem o uso da bicicleta e das fontes renováveis de energia. Em visita ao Presidente-Executivo do Grupo RAC, Ítalo Hamilton Barioni, Knobel concedeu entrevista e falou do período à frente da Unicamp, dos perrengues que enfrentou e adianta: quer distância da política e divulgar a ciência.

Olhando em retrospectiva, e considerando a sucessão de crises que a sua gestão enfrentou, o senhor diria que a experiência à frente da Reitoria da Unicamp valeu a pena?

Sempre tem pontos positivos e negativos, mas eu acho que sim, que valeu a pena. A possibilidade de poder impactar positivamente a vida de tanta gente é algo incrível, mesmo nos momentos mais críticos. Isso já compensa. Cada vez que eu vou a uma formatura, cada vez que eu passo diante do hospital [Hospital de Clínicas] e vejo pessoas sendo tratadas ali, eu percebo que foi uma experiência positiva. Obviamente, tivemos uma situação muito difícil de início, que foi promover a recuperação financeira da Unicamp.

Quando eu assumi a Reitoria, a universidade gastava 17% a mais do que recebia do Estado. Ou seja, estávamos caminhando para o precipício. Tivemos que promover uma reestruturação nos gastos, redefinir prioridades e colocar o pé no freio. Foi um momento muito difícil, inclusive do ponto de vista político. Hoje, felizmente, as contas estão equilibradas e é assim que vamos entregar a Unicamp para o meu sucessor.

Além da recuperação financeira da universidade, o senhor diria que a adoção de programas de inclusão, como as cotas étnico-raciais, foi um dos principais legados da sua gestão?

Bem, ainda não superamos completamente a crise. Essa preocupação com as contas da universidade precisa ter continuidade. Apesar das dificuldades que enfrentamos, conseguimos criar coisas novas. Entre elas estão as cotas étnico-raciais, a agenda em defesa dos direitos humanos, o Hub Internacional de Desenvolvimento Sustentável [HIDS], o Instituto de Estudos Avançados, entre outras iniciativas. Tudo isso com uma margem muito pequena de recursos para investimento. Tudo isso me deu muita satisfação, mas talvez seja um conjunto de ações que será valorizado daqui a alguns anos. É o que espero.

O senhor diria que a população e sua vasta diversidade estão representadas de forma mais equânime da Unicamp após a adoção dos programas de ação afirmativa?

Penso que sim. Esse movimento para tornar a universidade mais diversa é uma das marcas desta gestão. Mas tem outras. Uma delas é a "desconstrução" do vestibular como a única maneira de ingresso na universidade. Nós criamos novas portas de entrada, como as cotas étnico-raciais, o vestibular indígena e a admissão de medalhistas de olimpíadas científicas. Além disso, mantivemos o Profis, que é um programa que abre vagas aos melhores alunos das escolas públicas de ensino médio de Campinas. Tudo isso corresponde a uma nova realidade, na qual a sociedade está mais bem representada.

Existe uma avaliação do desempenho desses novos grupos?

Ainda estamos estudando os primeiros dados. Afinal, são apenas dois anos de experiência, sendo que um deles foi totalmente atípico por causa da pandemia. Sempre se discutiu na Unicamp a questão da qualidade relacionada às novas formas de ingresso nos cursos de graduação. Nosso vestibular oferece 3.300 vagas, que são disputadas por cerca e 80 mil candidatos. Os melhores candidatos têm desempenho muito parecido entre eles. A aprovação muitas vezes é definida por décimos. Eu tenho plena convicção, ainda que baseado nos poucos dados que temos, que os estudantes que ingressaram pelas portas alternativas ao vestibular têm desempenho parecido. Não tivemos mudanças drásticas em termos de evasão, desistência ou média de notas.

A Unicamp foi a primeira universidade pública no Brasil a suspender as atividades presenciais por causa da pandemia de covid, que estava apenas no começo. Como foi tomar essa decisão?

Na verdade, creio que foi a primeira universidade no geral. Fomos muito criticados. Na ocasião, havia 62 casos no Estado de São Paulo. Aquela semana foi muito marcante para mim, porque meu sogro havia morrido. Voltando de São Paulo no dia seguinte, ouvindo rádio, fiquei sabendo da situação na Itália, na Espanha e em outros países. À noite, não consegui dormir. Quando deu 6h, mandei uma mensagem para minha equipe pedindo para que estivesse na reitoria às 8h. Conversei com os demais dirigentes e com especialistas em infectologia e epidemiologia da universidade. Não tínhamos nenhum caso na Unicamp, mas mesmo assim decidi suspender as atividades presenciais. Conclui que era melhor pecar por excesso de cuidado do que por omissão. Penso que tomamos a decisão acertada naquele momento.

Do ponto de vista acadêmico, qual foi o aprendizado deixado por 2020?

Eu apontaria dois tipos de aprendizado. Primeiro, a capacidade de transformação dos professores, dos estudantes, dos servidores. Tivemos que mudar completamente a maneira de dar aula, assim como os alunos tiveram que mudar também a forma como estudavam. Fizemos a transição do presencial para o virtual em apenas duas semanas, sem ter qualquer experiência anterior. Fizemos um grande esforço para não deixar nenhum estudante para trás, ajudando aqueles que precisavam.

Muitas universidades demoraram seis meses, oito meses pra chegar nesse ponto. O segundo aspecto que eu gosto de ressaltar é a capacidade que a gente teve de criar programas inovadores, como o voltado ao apoio da sociedade civil. Nós criamos um programa de voluntariado e um de doações. Recebemos muitas doações, tanto de pessoas físicas quanto do Judiciário e do Ministério Público, decorrentes de termos de ajustamento de conduta. Em termos de cifras, recebemos mais de 15 milhões de reais em doações. Também pudemos ajudar, com cestas básicas, famílias em situação de vulnerabilidade que vivem em bairros próximos da universidade. Foi incrível a capacidade de resposta da nossa comunidade.

A comunidade acadêmica sempre teve um zelo muito grande em relação à possível adoção do ensino a distância. A experiência do período recente pode mudar um pouco a visão sobre isso?

A atividade presencial é fundamental na universidade, na minha visão. O principal se aprende fora da sala de aula. Podemos perguntar para qualquer um que estudou na universidade quais foram as experiências que ficaram, e a pessoa vai dizer que são os colegas, os encontros nos centros acadêmicos, a presença nas atividades artísticas e culturais. Hoje, vivemos em um mundo digitalizado. Eu sou físico. Eu posso assistir a uma aula de Física da Unicamp, da USP ou do MIT [Massachusetts Institute of Technology] na internet. Está tudo disponível. Assim, resta aproveitar melhor o professor em sala de aula para tirar dúvidas, para discutir questões, para propor novos problemas. Não faz sentido o professor ficar dando a mesma aula 40 vezes com o uso de PowerPoint. Existem muitos caminhos para aprimorar a qualidade do ensino.

Um problema relacionado a esta questão é o da desigualdade. Temos alunos que moram a cinco minutos da Unicamp. Estes acordam às 7h, tomam um bom café e vão para a aula. Mas também temos alunos que moram a três horas da universidade. Eles acordam às 5h, pegam três conduções e tomam o café da manhã correndo no bandejão [restaurante universitário], que vende o desjejum por 1 real. Esta diferença foi amplificada pela pandemia. Então, nesse caso, pode ser interessante encontrar um mecanismo híbrido, com o qual consigamos equilibrar certas situações. Temos que analisar as possibilidades.

A descrição desse momento remete ao projeto de criação da Unicamp, comprometido com a produção do conhecimento e da ciência para o bem a sociedade. O senhor diria que a universidade trilha este caminho?

Na minha visão, a Unicamp sempre teve esse perfil diferenciado, ela já nasceu assim. Apesar das dificuldades, visto que passamos por várias crises nesses mais de 50 anos, a universidade conseguiu ocupar uma posição entre as cinco melhores instituições de ensino da América Latina. Somos campões em termos de produção de patentes e temos programas de extensão muito importantes. Penso que nosso objetivo é nos mantermos nesse rumo, sempre à frente das questões importantes para o país.

A Unicamp tem forte interação com o setor produtivo, licenciando patentes e transferindo tecnologias para as empresas. Entretanto, há outro aspecto importante, que são as chamadas "Filhas da Unicamp", empresas normamente de tecnologia que foram fundadas por ex-alunos da universidade. O que as Filhas da Unicamp representam em termos de geração de emprego e riqueza para a região e o País?

É interessante ver como o conhecimento se transforma em riqueza. Há alguns anos a Unicamp acompanha as empresas que nasceram a partir dos seus estudantes e dos seus funcionários. O nosso cadastro hoje tem mais de 1.000 empresas registradas, que geram 33.000 empregos diretos, com um faturamento anual da ordem de 8 bilhões de reais. Esse valor representa em torno de quatro vezes o orçamento da Unicamp. É um exemplo que mostra com toda a clareza que o dinheiro injetado na universidade pública não é gasto, é investimento. Tudo que é investido na universidade pública retorna multiplicado para a sociedade. Isso sem falar dos recursos humanos que formamos e que contribuem para o desenvolvimento do País. Um dado interessante é que perto de 70% dessas empresas estão instaladas na Região Metropolitana de Campinas (RMC). Ou seja, nasceram aqui e continua aqui, gerando riquezas para a região.

Em relação ao Hub de Desenvolvimento Sustentável citado pelo senhor, em que estágio ele está e como o senhor vê a progressão do projeto?

Quando assumi a Reitoria, a Unicamp tinha comprado a Fazenda Argentina, uma área com cerca de 60 mil hectares contígua ao campus de Barão Geraldo. Na ocasião, não havia um projeto para o local. Aí surgiu a ideia da implantação de um Hub de Desenvolvimento Sustentável naquele espaço. Inicialmente, era um projeto da Unicamp. Depois, surgiu a oportunidade de estabelecermos um consórcio formado por universidades, empresas públicas e privadas e a Prefeitura de Campinas. Com o tempo, mais e mais parceiros foram subindo no barco. O objetivo é criarmos um bairro que cocentre empresas, universidades e institutos de pesquisas comprometidos com estudos, produtos e processos relacionados ao conceito de sustentabilidade propugnado pela ONU.

Obtivemos um financiamento a fundo perdido do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), no valor de US$ 1 milhão, para fazer o plano diretor. O desafio agora é organizar as ideias e fazer com que todos os atores falem a mesma língua. É um projeto ousado, mas que estamos enfrentando. Provavelmente vamos precisar de mudanças na legislação para favorecer a implantação do bairro e a construção de edificações. Hoje temos um grupo de 500 pessoas trabalhando no projeto.

O que o senhor acha da ideia de se criar uma Zona Franca do Conhecimento no local onde funcionará o HIDS?

Ela é uma proposta boa. Naturalmente, vamos precisar de incentivos fiscais para atrair mais parceiros. Mas ainda não temos claro qual seria o melhor mecanismo. Hoje vivemos uma situação até insólita. Tem empresa querendo entrar, mas não sei nem falar como isso poderia ser viabilizado.

Qual a principal vocação do bairro em termos de geração de processos e produtos?

A vocação é desenvolvimento sustentável. Queremos gerar ideias e soluções que estimulem o reuso da água, o uso da bicicleta e das energias renováveis. A proposta é que o bairro trabalhe em torno dessas questões.

Depois de enfrentar tantas crises e desafios, que recomendações o senhor deixaria ao seu sucessor?

Fizemos algo que eu considero muito expressivo, mas que é pouco visível: manter os gastos da universidade em um patamar fixo, porque se você não tiver cuidado, os gastos "crescem sozinhos". Vou entregar a universidade com as contas equilibradas para o meu sucessor. A recomendação ao próximo reitor é que mantenha essa austeridade. É preciso ter pé no chão, ter cuidado com o futuro.

Nos últimos dois anos, a universidade, principalmente a pública, foi muito atacada por uma corrente conservadora. Entretanto, a pandemia mostrou como são importantes as atividades desenvolvidas nessas instituições. Como o senhor viu esses ataques?

O complexo hospitalar da Unicamp faz parte do SUS. Temos em torno de 6 mil funcionários trabalhando nos nossos hospitais, que são 100% SUS. Essa era uma participação quase invisível antes da pandemia. Tiveram muitos ataques, dos mais ingênuos até de ministros, que chegaram a dizer que se plantava maconha nas universidades públicas e que essas instituições promoviam balbúrdias. Ao mesmo tempo, tivemos cortes importantes de verbas para as agências de financiamento de pesquisas. Nossa autonomia também foi ameaçada. Foi criada uma CPI [Comissão Parlamentar de Inquérito] pela Assembleia Legislativa de São Paulo para investigar denúncias de irregularidades que não tinham qualquer fundamento.

Vivemos um período mito difícil e constrangedor. Mas saímos fortalecidos dessas situações. A pandemia, de certa maneira, revelou algumas das atividades desenvolvidas pela universidade pública que são essenciais ao País e à sua gente. A ciência também saiu fortalecida. Chegamos a uma situação inédita de ver as pessoas paradas diante da televisão para assistir à reunião da Anvisa [Agencia Nacional de Vigilância Sanitária], comemorando como se fosse um gol a aprovação do uso da vacina. Tudo isso foi muito importante para mostrar o que realmente fazemos e representamos.

O senhor talvez tenha sido o reitor que, até por força das circunstâncias, mais manteve relacionamentos políticos. O Marcelo Knobel deixa a reitoria e volta para o laboratório, para a sala de aula, ou o Marcelo Knobel tem pretensões de trazer novas contribuições relacionadas à gestão da educação no Brasil?

Além dessas, eu acho que eu tive uma preocupação muito grande, até pelo meu perfil, de ter uma presença internacional muito forte, que é a outra função do reitor. Mas não tenho a mínima aspiração nesse sentido. O que quero é distância de qualquer instituição política, não quero saber de política, em nenhuma esfera. Eu mantenho meu laboratório, mantenho minhas atividades de pesquisa, que vou retomar com um pouco mais de força. Também quero me dedicar um pouquinho a outra área que eu gosto muito, que é a divulgação da ciência. Durante a pandemia eu criei um canal no YouTube. Senti a necessidade de ter uma plataforma que mostrasse a força e a importância da educação na vida das pessoas. Então, vou me dedicar um pouco mais a esse trabalho que eu acho muito importante, de divulgar as universidades, a educação superior e a ciência.

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