MEMÓRIA BRASILEIRA

Unicamp analisará objetos coletados no antigo DOI-Codi

Trabalho conta com a participação de outras universidades; objetivo é criar um memorial em defesa da democracia na sede do extinto órgão, em São Paulo

Edimarcio A. Monteiro/ [email protected]
17/08/2023 às 09:07.
Atualizado em 17/08/2023 às 09:07
As escavações na sede do antigo DOI-Codi foram realizadas entre os dias 2 e 14 de agosto e seguiram técnicas de arqueologia e investigação forense (Divulgação)

As escavações na sede do antigo DOI-Codi foram realizadas entre os dias 2 e 14 de agosto e seguiram técnicas de arqueologia e investigação forense (Divulgação)

O Laboratório de Arqueologia Pública (LAP) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) fará a análise dos cerca de 300 objetos coletados durante as escavações feitas este mês no prédio do extinto Destacamento de Operações de Informação-Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), em São Paulo. O trabalho integra um projeto que envolve vários órgãos públicos, de direitos humanos e universidades do país para a criação de um memorial no local em defesa da democracia e para lançar luz sobre uma fase sombria da história brasileira recente.

O DOI-Codi foi um órgão oficial que atuou clandestinamente para prender e torturar opositores à ditadura militar brasileira, que durou de 1964 a 1985. A estimativa é que cerca de 7 mil pessoas tenham sido torturadas em suas instalações entre 1969 e o final do regime militar, quando foi desativado. "A democracia deve ser defendida independente de partido político, de esquerda ou de direita. Entender e divulgar o que ocorreu é importante para que a ditadura não se repita", afirmou a professora da Unicamp pesquisadora do Núcleo de Estudos de Pesquisas Ambientais (Nepam) Aline Carvalho, que atua no projeto.

Para ela, esse regime de exceção, a despeito da corrente política que o adota, é marcado pela suspensão dos direitos individuais, abrindo caminho para a ocorrência de arbitrariedades e violência. Os materiais foram coletados em escavações realizadas entre os dias 2 e 14 passados, que seguiram técnicas de arqueologia e investigação forense. Os objetos foram divididos em dois grupos.

A Unicamp recebeu itens como jornal, tinteiro, sola de sapato, papéis de bala e outros materiais, que devem começar a ser analisados a partir da segunda quinzena de outubro. A previsão é que os trabalhos durem entre de seis e oito meses. Os objetos com indícios de material orgânico humano, como sangue, serão analisados pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Os resultados das análises serão cruzados com outras informações para identificar o que aconteceu no prédio da Capital paulista. Membros do Grupo de Trabalho (GT) Memorial DOI-Codi também fizeram entrevistas com cerca de 100 antigos presos políticos para reconstruir a história sobre o local e guiar os trabalhos.

GRUPO INTERDISCIPLINAR

A Unicamp já encerrou a identificação do material coletado e agora iniciará a inscrição, seleção e curso para os alunos da instituição interessados em participar da análise. A proposta é formar um grupo interdisciplinar, envolvendo estudantes de diversas áreas, como Física, Química, História e outras. "Nós também queremos incentivar a formação de futuros pesquisadores. A constituição de um grupo interdisciplinar é importante porque esses alunos podem ter perguntas e encontrar respostas que nós não enxergamos", explicou Aline.

Durante as escavações no DOI-Codi, os pesquisadores também encontraram inscrições na parede de um banheiro, como se fossem inscrições representando um calendário. "Uma pessoa provavelmente estava fazendo a contagem do tempo em que esteve aqui presa. Tem dias da semana, mês. Essas inscrições são interessantes e também temos depoimentos de pessoas que se lembram delas, complementando a história", explicou a Claudia Plens, professora da Unifesp e arqueóloga que coordena a investigação forense.

Além dessa instituição e da Unicamp, o GT Memorial DOICodi tem a participação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Ministério Público do Estado de São Paulo, Unidade de Preservação do Patrimônio (UPPH) do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) e entidades da sociedade civil ligadas à preservação da memória e à defesa dos direitos humanos, como o Instituto Vladimir Herzog e o Núcleo Memória.

O QUE FOI

O grupo de trabalho atua para derrubar o falso conceito que a atuação do órgão de repressão ocorria às escondidas. Tanto que foram cunhados velhos chavões segundo os quais as torturas ocorriam nos "porões do DOI-Codi" ou "porões da ditadura". Porém, ele funcionou em um prédio instalado na Rua Tutóia, 921, na Vila Mariana, em São Paulo. O imóvel, que pertence à Secretaria Estadual de Segurança Pública, foi tombado pelo Condephaat em 2014. Ele não tem valor arquitetônico, mas é uma peça importante para entender a história nacional.

"Não tem nada de porão no prédio da Rua Tutóia. A Vila Mariana é um bairro de classe média alta e a delegacia está à vista de todos. Há muitas casas ao lado, então os vizinhos tinham o conhecimento de que algo muito errado ocorria ali dentro", afirmou Deborah Neves, historiadora e técnica da UPPH. O tombamento do local foi feito em 2010 a pedido do ex-preso político Ivan Seixas, que, aos 16 anos, foi levado para o DOI-Codi junto com o pai, Joaquim, mãe e irmãs. A família foi torturada, presenciou o assassinato de Joaquim e uma das filhas sofreu violência sexual.

Trabalhos de investigação que envolvem o período da ditadura militar localizaram e identificaram 53 pessoas que foram mortas e enterradas clandestinamente ou jogadas em valas comuns como indigentes nos cemitérios de Perus, Campo Grande e Vila Formosa, na Capital. O DOI-Codi é considerado o principal órgão de repressão no Brasil durante a ditadura militar e inspirou a criação de outros no país e na América do Sul. Posteriormente, unidades também foram instaladas no Rio de Janeiro, Recife (PE) e Porto Alegre (RS).

NOMES FAMOSOS

A unidade de São Paulo foi criada por meio de uma parceria entre o Exército e a Secretaria de Segurança Pública, com o nome de Operação Bandeirante (Oban). O órgão tinha a participação de agentes da Polícia Civil, Polícia Militar, Exército, Marinha e Aeronáutica. Para o local eram levadas pessoas presas clandestinamente, enquanto que as que eram registradas oficialmente iam para o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS).

Entre 1969 e 1974, o DOI-Codi paulista ficou sob comando do coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, período em que ficou conhecido como Major Tibiriçá. Em 2008, ele se tornou o primeiro militar a ser reconhecido como torturador pela Justiça, mas morreu sete anos depois sem ser julgado pelos crimes que lhe foram atribuídos. Segundo a Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, 40 pessoas foram mortas no DOI-Codi enquanto Ustra esteve à frente do órgão.

Em depoimento à Comissão Nacional da Verdade, em 2013, o militar negou que tivesse cometido qualquer crime durante o período. "No meu comando, ninguém foi morto dentro do DOI, todos foram mortos em combate", disse Ustra, como consta em documentos divulgados pela Comissão Nacional da Verdade, para a qual o coronel deu depoimento.

"Nós éramos órgão de combate. Apareceram três mortos depois, apareceram. O senhor acha que eram santinhos que foram executados lá dentro, que não havia terrorismo naquela época", afirmou o militar à época.

Entre as pessoas que tiverem a morte no DOI-Codi reconhecidas oficialmente estão o jornalista Wladimir Herzog e o ex-deputado federal de oposição Rubens Paiva, pai do escritor Marcelo Rubens Paiva. A transformação do prédio usado pelo órgão em memorial tramita na Justiça. Enquanto o espaço não é criado, o material coletado no local ficará sob a guarda da Unicamp.

De acordo com Aline Carvalho, os objetos serão usados em exposições itinerantes e expostos à visitação do público e de estudantes. Para a pesquisadora da Unicamp, esse trabalho e o memorial são importantes para ressaltar a importância da democracia. "Nossa ideia é manter viva a memória do trauma da ditadura militar para que isso nunca se repita. As ciências contribuem com um arcabouço de métodos de análise e nos ajudam a produzir informações para compreendermos esse passado e construirmos percepções para uma sociedade democrática", afirmou. A proposta segue a linha do que a Alemanha faz com os campos de concentração da 2ª Guerra Mundial, que são mantidos abertos para visitação e mostrar os horrores promovidos pelo nzismo e evitar a sua volta.

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