PAZ E HARMONIA

Unicamp acolhe a cultura e o saber indígenas em seu campus

Esta sexta-feira é o último dia do IX Encontro Nacional dos Estudantes Indígenas (ENEI)

Ronnie Romanini / ronnie.filho@rac.com.br
29/07/2022 às 10:03.
Atualizado em 29/07/2022 às 10:06
Índigena participa do IX Encontro Nacional dos Estudantes Indígenas (ENEI) na Unicamp: durante quatro dias, a universidade esteve ornamentada com as cores, cantos e demais elementos da cultura dos povos nativos (Ricardo Lima)

Índigena participa do IX Encontro Nacional dos Estudantes Indígenas (ENEI) na Unicamp: durante quatro dias, a universidade esteve ornamentada com as cores, cantos e demais elementos da cultura dos povos nativos (Ricardo Lima)

Em evento iniciado na última terça-feira (26) e com encerramento previsto para esta sexta (29), mais de dois mil estudantes, ativistas e artistas transformaram o campus da Unicamp em um espaço de vivência e harmonia nas relações entre indígenas e não indígenas, promovendo uma aproximação entre esses dois segmentos. Sede do IX Encontro Nacional dos Estudantes Indígenas (ENEI), a Unicamp esteve ornamentada com as cores, cantos e demais elementos da cultura indígena amplificados em debates, oficinas, simpósios temáticos e atividades culturais, sob o tema "Ancestralidade e contemporaneidade".

Uma das lutas principais é para que o conhecimento dos indígenas seja reconhecido pela academia e pela sociedade. O conhecimento da cultura indígena e toda a sua ancestralidade são somados agora com a inclusão cada vez maior de estudantes na universidade, combinando e acrescentando saberes distintos. Porém, além das vagas em cursos superiores, a permanência estudantil dos estudantes que saem dos seus territórios para desbravar o desconhecido é essencial para que não haja desistências e que os alunos indígenas tenham amparo para continuar na busca por especialização.

Durante a graduação, estudantes da Unicamp contam com o auxílio de alunos de outras universidades que há mais tempo recebem indígenas no seu corpo discente. Entender que a dificuldade sentida nos primeiros meses já foi superada por outros alunos é essencial para manter o foco. "A 9ª edição do ENEI discute além da inclusão na academia, como está a permanência estudantil. Analisamos e comparamos como está a situação, no que precisamos lutar mais, o que ainda precisa de mais inclusão. Esta edição vem com essas questões. Queremos ver o resultado, o que vai ser melhorado. O evento também serve para celebrar o que já conquistamos", contou a estudante de História da Unicamp, Vera Lúcia, da etnia Tukano.

Ao chegar à universidade, uma das maiores dificuldades é a sensação de solidão. São poucos indígenas inseridos no contexto acadêmico. Durante o evento, a troca de experiências, afeto e de conhecimentos de etnias distintas preenche esse vazio e estabelece conexões duradouras para que o trajeto até a conclusão do curso seja com menos obstáculos e mais acolhimento e compreensão.
Vera Lúcia, que entrou em 2021 na Unicamp vindo da Terra Indígena Alto Rio Negro, no Amazonas, relatou a dificuldade inicial e as conexões feitas no ENEI. "Eu senti muita saudade de casa nos primeiros meses. (É difícil) estar distante do meu território, da minha ancestralidade. Agora estou me adaptando aos poucos à nova realidade, ao frio, ao sotaque. Estou adentrando no universo da faculdade, na trajetória acadêmica. E é algo novo, conhecer o território que não é o meu (...) eu estava agora mesmo pensando, sobre a pluralidade de povos, o conhecimento, as lutas que diferem de região para outra. E eu me senti em casa. Compartilhando ideias e a minha caminhada com outros, compartilhando e enraizando o nosso parentesco".

Ela ainda revelou mais uma reflexão: quando o encontro acabar, ao fim do dia de hoje, ela fatalmente sentirá novamente um vazio e voltará a caminhar sozinha pela universidade, mas conhecer histórias semelhantes de outros indígenas e compartilhar experiências de enfrentamento dos obstáculos faz com que a força seja renovada e o conhecimento e vivência ampliados.

Nesta quinta-feira (28), em uma das atividades que ocorreram no Teatro de Arena, Leonardo Moreira Fernandes, também conhecido como Kirimbawa, estava ajudando na organização do evento e relatou a experiência pessoal. Ele saiu de uma comunidade ribeirinha em Santa Isabel do Rio Negro, também no Amazonas, para estudar engenharia de telecomunicações na Unicamp em Limeira. 
Entrar na faculdade não foi fácil. Foi preciso teimosia, perseverança e incentivo. A princípio, os pais, que não completaram o ensino fundamental, queriam que ele continuasse o trabalho de extrativismo e pesca, mas apoiaram o jovem de 27 anos após a decisão de sair do seu território e buscar o diploma, algo que a irmã mais velha conseguiu primeiro ao se formar em Letras - o que também foi um incentivo.

"Os primeiros indígenas que chegaram à Unicamp tiveram dificuldade no começo, com a cultura diferente. A adaptação foi longa, mas ao longo dos semestres as pessoas foram ajudando, principalmente as pessoas pretas, LGBT+, minorias que também sofrem com dificuldades. Os novos estudantes que entram na faculdade vão pedindo ajuda de outros com mais experiência. Muitas pessoas têm problemas como a falta de recurso financeiro. E nos juntamos para poder melhorar, para entender que viemos estudar."

Kirimbawa contou que no início percebeu que muitos alunos não indígenas eram oriundos de colégios privados, bem preparados para a vida acadêmica, mas não demorou muito para que ele começasse a receber auxílio e aprender novas coisas. Outro obstáculo relevante para o estabelecimento de novas conexões e adaptação mais rápida é que a maioria dos indígenas é tímida. Da etnia Pataxó, Tamikuã Faustino, 54 anos, é uma das coordenadoras da Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (Arpinsudeste). Emocionada após ouvir falas sobre os atentados cometidos contra indígenas da etnia Guarani-Kaiowá, ela lamentou o sofrimento e pediu: nenhuma gota de sangue indígena a mais.

"Quando a gente ouve falar de longe, e a mídia não mostra (é uma coisa), mas nós, indígenas, temos uma conexão do que está acontecendo com os 305 povos. Sabemos o que acontece. Longe sentimos a dor, mas não sabemos do sofrimento como um todo. Vendo os relatos do que acontece neste momento... é revoltante. Revolta saber que não somos amparados pelo direito de proteção à vida. Nós defendemos a vida, a vida da nossa água, da nossa mãe natureza, do nosso planeta. E também temos que defender a nossa vida, dentro do nosso território. Da nossa casa. Estamos desprotegidos, sem proteção do governo que está aí para nos apoiar. A Fundação Nacional do Índio (Funai), que era para nos defender, era a nossa casa, nós também perdemos. É muito doloroso ver 'parentes' perdendo a vida todos os dias."

Ela também refutou quem é contra a presença de indígenas na universidade e em contextos urbanos, quem menospreza os que saem de seus territórios. "Muitos não indígenas acham que nós não temos direito à universidade. E nós brigamos porque queremos ocupar todos os espaços que são nosso por direito, seja na universidade, dentro de escritório, na maternidade, câmaras municipais, prefeituras... temos que ocupar (...) Eu falo que antigamente aprendíamos com os mais velhos. Hoje, nós, mais velhos, estamos aprendendo com os mais novos. O indígena sai para uma universidade e as pessoas pensam que é para ser bonito, ser doutor... Ele quer ser doutor sim! É um direito dele, mas ele vem, se forma e volta ao território para defender o nosso povo."

O estudo, além de ampliar conhecimento, é a esperança para que todos os elementos culturais, ancestrais e toda a luta do povo indígena sejam preservados e cada vez mais ampliados, ocupando espaços que ao longo de séculos foram lacrados para eles.

Último dia


Esta sexta-feira é o último dia do evento, com a festa de encerramento programada para as 20h. Durante todo o dia, desde às 7h (horário do café da manhã), as últimas atividades acontecerão, como Fóruns de Saúde e definição de qual será a próxima sede do ENEI. A estimativa é que, até ontem, cerca de 1,5 mil pessoas participaram das atividades, com aproximadamente 200 etnias representadas, como Tukano, Guarani-Kaiowá, Pataxó, Tupiniquim e Tupinambá. Atualmente, 75 mil estudantes indígenas frequentam o ensino superior do país. Em 2007, eram 7 mil. Na Unicamp, são 387, sendo que em 2017 eram 66 (entre graduandos e pós-graduandos). A programação do último dia está disponível no site www.enei-evento.com.br/programa

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