ESPECIAL/ALCOOLISMO

Uma díficil batalha contra o alcoolismo

Dependência leva a atitudes extremas, como beber etanol com água para satisfazer o vício

Fábio Galacci
21/04/2013 às 09:13.
Atualizado em 25/04/2022 às 19:30
O andarilho J.L. teve o primeiro contato com a bebida em casa aos 14 anos (Élcio Alves)

O andarilho J.L. teve o primeiro contato com a bebida em casa aos 14 anos (Élcio Alves)

Uns poucos trocados no bolso, uma garrafa na mão e uma mentira na ponta da língua serviam para o andarilho J. L., de 36 anos, saciar de modo extremo o seu desejo por álcool. Além da cachaça, que o acompanhou desde a adolescência, o homem, natural de Faxinal (PR), passou a beber etanol quando veio para a região de Campinas, há quase uma década. Em postos de beira de estrada ou da região central da cidade, ele conseguia o produto, jurando que o usaria apenas para cozinhar. Desde agosto de 2008, a venda de álcool combustível em garrafas pet e sacos plásticos é proibida.

“Não tinha pinga, bebia etanol misturado com água. Ficava satisfeito porque subia rápido à cabeça. Dormia o dia inteiro, não conseguia nem levantar. Algumas vezes, eu cheguei a desmaiar na beira da pista. Com o gosto do álcool na boca, fui parar em um hospital. Achei que ia morrer”, lembra o andarilho na primeira reportagem da série Vida em Agonia, que o Correio publica a partir deste domingo (21).

Hoje, ele está em uma casa de apoio da entidade espírita Os Seareiros, no Taquaral. Ali, com as mãos trêmulas pedindo por mais uma dose, ele tenta vencer seus demônios, ainda muito presentes. “Partes da minha mente ficam brigando. Não sei se vou ou não. Hoje eu não bebi, mas estou com vontade, neste momento.”

De acordo com o psiquiatra e coordenador do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Dartiu Xavier da Silveira, pesquisas mostram com certa frequência casos envolvendo o consumo de etanol entre homens e, cada vez mais, mulheres. Fundamentalmente na população de baixa renda. “Já não é uma coisa tão rara. Em geral, o problema envolve pessoas que têm o acesso dificultado ao álcool e entram em desespero. O desfavorecimento social é um complicador muito grande. São pessoas pobres, que não encontram alternativa e consomem o que estiver pela frente. Isso vale para qualquer droga. Quando a pessoa tem dificuldade de acesso à substância, ela estabelece formas mais perigosas de consumo”, explica o psiquiatra.

J.L. teve o primeiro contato com o álcool aos 14 anos, em casa. “Comecei a beber com meus pais e, depois de muita briga, acabei saindo pelo mundo. Resolvi viver a minha própria vida. Sofri na rua, não sabia pedir. Passei fome, dificuldades”, conta. No começo, tentou sobreviver como podia. “Eu trabalhava, morei em pensão, era servente de pedreiro”, diz. Mas voltou a beber com conhecidos em Ourinhos e arrumou coragem para pedir dinheiro nas ruas. Nos dias em que bebia, faltava ao serviço e as oportunidades iam embora.

Recentemente, após ficar 15 dias sem tocar em qualquer bebida alcoólica, teve uma recaída. Ao voltar para o abrigo, agrediu um monitor. “Deu saudade da minha família, um desespero. Daí resolvi sair para beber. Quando começo, enquanto eu não chapar, eu não paro. E fico violento”, admite, mostrando algumas lembranças que ganhou pelo caminho da dependência. Uma marca no rosto de uma facada que tomou quando dormia nos arredores do Mercadão, no Centro é uma delas. Outro risco de faca fica perto do coração.

“Eu nem vi o que aconteceu, estava chapado. Quando acordei, estava no hospital todo costurado. Estava dormindo e fui atacado por uns nóia (usuários) de crack que queriam dinheiro. Como não tinha, eles meteram a faca. Quando dormia no Centro, passava mais tempo no pronto-socorro do que na rua”, diz.

Além do álcool, J.L. costumava abusar de outras substâncias e o risco de continuar usando ainda ronda. Não há preferência. “Eu uso o que estiver na frente. Costumo ir no embalo dos outros. Já usei crack no Mercadão. É melhor que pinga. Estou tentando superar esse problema, mas está difícil”, diz o andarilho, que ainda recebe atendimento em um Centro de

Atenção Psicossocial (CAPs) da cidade. Ele também relembra suas origens trabalhando com a terra: ajuda na jardinagem. “Quando não bebo, fico bem melhor, acordo animado”, comemora J. L., que tem outros sete irmãos, sendo cinco homens. Todos têm problemas com o álcool.

Vínculos

Psicóloga social da casa de apoio daentidade Os Seareiros, Patrícia Ferrato Calvo afirma que os principais objetivos do local são restabelecer os vínculos entre os abrigados e suas famílias e possibilitar a reinserção no mercado de trabalho.Atualmente, vivem no espaço 17 homens entre 18 e 59 anos de idade. “Cem por cento deles têm ligação com álcool”, diz. O tempo médio de permanência na casa é de um ano, mas os casos mais delicados, como o de J.L., se prolongam. “Alguns conseguem vencer o vício, retornar para as suas famílias, empregos e estudos. Outros, infelizmente, voltam para a rua”, aponta a psicóloga.

Especialista defende política pública de alerta

Ele está disponível nas baladas, nas geladeiras das famílias, nos supermercados, no balcão do bar, rodeado de mulheres esbeltas na TV. O álcool é uma droga socialmente aceitável, muitas vezes apontada como agente agregador e, no caso dos homens, fator importante de afirmação desde jovem. A imagem da dependência não é tão bela ou alegre. Em excesso, entre outros males, o álcool destrói o fígado, o sistema neurológico, pode provocar cegueira e até a morte. Mas a publicidade e o dinheiro estão ao seu lado. Para o psiquiatra e coordenador do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes da Unifesp, Dartiu Xavier da Silveira, o incentivo ao consumo de álcool deveria ser banido dos meios de comunicação.

“É necessário uma política pública de alerta sobre o álcool mais eficaz. Existe todo um investimento na divulgação dos problemas causados pelas drogas ilícitas, quando a gente sabe que o problema com o álcool é pelo menos 20 vezes maior”, afirma. “Isso se deve à frequência. Falamos muito atualmente sobre a epidemia de crack, mas a dependência de álcool é de 20 a 30 vezes mais frequente do que a de cocaína e crack, por exemplo.

Embora o crack seja uma droga muito agressiva, o álcool também é. O fato dele ter status de produto legalizado serve para que as pessoas banalizem o uso”, afirma Silveira.

O psiquiatra reforça a necessidade de que, assim como aconteceu com o cigarro, a publicidade de bebidas alcoólicas seja banida da mídia. “Mas existe muito dinheiro envolvido, lobby da indústria. Há os casos, por exemplo, das cervejas que vendem a ideia de terem um baixo teor de álcool, mas é só tomar várias delas para se chegar a um nível alto. A publicidade foca o público jovem”, critica. “Até nos meios de comunicação é muito comum você ver, por exemplo, que um indivíduo cheirou cocaína e matou a família. Contudo, do ponto de vista científico, a única substância que está associada com a violência é o álcool. Mas falar que o indivíduo simplesmente tomou uma cachaça e matou a família não vende jornal, né?”, considera.

Apesar do problema, Silveira não defende que uma hipotética proibição da comercialização e venda de bebidas alcoólicas seja a solução, já que ela acabaria gerando mais prejuízos do que benefícios. Os Estados Unidos tentaram agir de forma mais radical com a Lei Seca, nos anos 30, mas isso apenas gerou a produção clandestina de bebidas e o fortalecimento das garras da máfia no país.

“Eu não sou contra o uso social do álcool, eu mesmo sou um usuário social dele. Mas deveriam existir campanhas de prevenção e tratamento para as pessoas que estão ultrapassando essa linha do ocasional e indo para a faixa de risco. Quando falamos em uma melhor política pública sobre o assunto é no sentido de uma maior atenção”, afirma o especialista.

A PROIBIÇÃO 

De acordo com norma da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) é proibido vender e transportar combustível em saquinhos plásticos e garrafas pet desde agosto de 2008 (NBR 15.594-1). A venda de combustível fora do tanque do veículo só pode ser feita utilizando-se recipientes metálicos ou não metálicos, rígidos, certificados e fabricados para este fim e que permitam o escoamento da eletricidade estática gerada durante o abastecimento. 

Os não metálicos devem ter capacidade máxima de 50 litros e atender aos regulamentos municipais, estaduais e federais. O abastecimento deve ocorrer com o recipiente fora do veículo e apoiado sobre o piso, sendo o bico embutido ao máximo possível dentro dele. Ainda segundo a norma, para evitar que aconteça transbordamento no caso de dilatação do produto, os recipientes devem ser abastecidos em até 95% de sua capacidade.

O desrespeito a essa determinação pode trazer sérias consequências aos revendedores, incluindo a responsabilidade criminal por danos causados pelo combustível vendido dessa forma.

Assuntos Relacionados
Compartilhar
Correio Popular© Copyright 2024Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por