VULNERABILIDADE SOCIAL

Um em cada quatro campineiros recebia algum auxílio social em 2020

Coordenadora do ‘Mapeamento da Vulnerabilidade’, Eliane Rosandiski diz que dados revelam desigualdade existente na cidade

Edimarcio A. Monteiro/ edimarcio.augusto@rac.com.br
08/02/2024 às 08:34.
Atualizado em 08/02/2024 às 08:34

Na casa de Eliana Aparecida Silva Gomes, no Jd. Rosália 4, botijão de gás é item de luxo e o consumo de carne depende de doações; a família se desdobra para tentar fugir da insegurança alimentar, uma história semelhante a de muitos campineiros (Alessandro Torres)

Eliana Aparecida Silva Gomes, moradora no Jardim Rosália 4, na periferia de Campinas, preparava no final da manhã de quarta-feira (7) o almoço para as 12 pessoas que moram na casa: sopa de macarrão com pescoço de frango e legumes. Ela cozinhava o prato em um fogão a lenha, porque a família estava sem dinheiro para comprar um botijão de gás, que acabou há alguns dias. O pescoço de frango, que ganhou em um açougue, era a única proteína prevista na quarta-feira (7) para a família. O jantar planejado teria arroz, feijão e verduras colhidas no quintal do apertado sobrado. “Carne vai ter apenas se conseguirmos alguma doação depois”, disse Eliana Gomes. Na geladeira havia apenas uma garrafa de água e uma panela com a sobra de uma massa de bolinho, que foi o café da manhã. Os três netos de Eliana teriam um cardápio mais variado garantido pela merenda escolar.

A difícil realidade da família é a mesma que era vivida por um em cada quatro moradores de Campinas em 2020. O quadro, que contrasta com o potencial econômico da cidade, é revelado pelo diagnostico “Mapeamento da Vulnerabilidade no município de Campinas: dados exploratórios do CadÚnico”, elaborado pelo Observatório PUCCampinas, que mostra que 274.465 pessoas estavam cadastradas para ter acesso a algum tipo de serviço do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) em 2020.

O balanço preliminar com base nos registros daquele ano mostra que praticamente 25% das pessoas tinham o auxílio de programas sociais para viver. O número de quem recorria a algum dos 24 benefícios disponibilizados, considerando um período ainda anterior à pandemia de covid-19, é equivalente a toda a população de uma cidade do porte de Sumaré.

O Bolsa Família é o mais famoso, mas há outros, como o Benefício de Prestação Continuada (BPC), a Tarifa Social de Energia Elétrica, Carteira da Pessoa Idosa e até quem busca desconto na compra da casa própria por meio do programa Minha Casa, Minha Vida.

No caso da família de Eliana Gomes, as únicas rendas que ela pode contar é o auxílio emergencial de R$ 375, que Eliana começou a receber durante a pandemia e que ainda é pago, e R$ 950 do auxílio federal concedido para uma das filhas, Cinthia, que perdeu a perna e parte da mão direita ao ser atropelada por um trem. Para tentar dar contas de todas as despesas, outros familiares coletam material reciclável na rua. “É isso que garante o arroz, mas às vezes passamos necessidade”, admitiu a filha Tainá Cândido da Silva, que divide a tarefa com a irmã e o padrasto, Alex, que trabalhava como repositor de mercadoria em um supermercado, mas perdeu o emprego. Se preparando para sair, ela precisou ir tomar banho na casa de um amigo, porque o chuveiro queimou e não tinha dinheiro para trocar a resistência. Nesta semana, a família teve que escolher entre fazer o conserto ou pôr comida na mesa.

IMAGEM DISTORCIDA

Para a coordenadora do “Mapeamento da Vulnerabilidade”, a economista Eliane Navarro Rosandiski, “os números levantados revelam a desigualdade de Campinas e mostram essa realidade da vulnerabilidade na periferia”. Ela, que também é professora da PUC-Campinas, classificou os dados apurados como “assustadores”.

A coordenadora do diagnóstico do Observatório PUCCampinas exemplificou o dado da renda média do trabalhador registrado na cidade, que é em torno de R$ 3 mil. No entanto, o número é puxado para cima por 20% da mão de obra que ganha acima desse valor enquanto 80% recebem um valor abaixo. Eliane Rosandiski salientou ainda que o diagnóstico reflete a realidade da população que integra o CadÚnico, ficando de fora quem nem mesmo conseguiu o acesso aos programas sociais.

É o caso do catador de recicláveis Celso Bezerra Torres, morador do Parque Oziel, que vive essa realidade, mas não foi identificado pelo diagnóstico. Ele perdeu o emprego de vigilante em 2018, não conseguiu se recolocar no mercado de trabalho e começou a receber R$ 600 do Bolsa Família há seis meses, isso depois de ficar dois anos na fila de espera.

“Mas não dá sobreviver com ele. Se não fizer uns biquinhos, a coisa fica feia”, disse Celso Torres. Com o complemento gerado pelo recolhimento de recicláveis e óleo usado, Torres consegue garantir a alimentação, mas admite que tem contas básicas, como de água e luz, em atraso. Com uma população de 1,13 milhão de pessoas, o município concentra 35,64% dos 3,17 milhões de habitantes que vivem na Região Metropolitana de Campinas (RMC), mas tem uma proporção maior no número de quem vive em extrema pobreza, ou seja, tem uma renda diária inferior a R$ 9,43, o que dá R$ 282,90 por mês, o equivalente a 20% de um salário mínimo.

Segundo o estudo do Observatório, Campinas tinha 27.209 pessoas que viviam nessa condição, o que representava 51% do total de 53.002 de moradores da RMC que sobrevivia com menos de US$ 1,90 por dia (algo em torno de R$ 9,44), valor usado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para classificar a extrema pobreza.

Para Eliane Rosandiski, a vulnerabilidade social de Campinas piorou após a covid-19. Ela explicou que 40% a 50% das famílias inseridas no CadÚnico tinham como principal fonte de renda a aposentadoria, mas muito idosos morreram durante a pandemia, o prejudicou o quadro socioeconômico do núcleo familiar. De acordo com a líder comunitária do Jardim Rosália 4, Ana Paula Santana Fernandes, das 1.482 famílias que residem na comunidade, surgida de uma ocupação há 27 anos, 112 vivem em estado de extrema pobreza e dependem dos programas sociais federais, estaduais ou municipais.

Ela avaliou que o número de beneficiários tem crescido também porque as pessoas aprenderam a buscar seus direitos. Ana Paula promove palestras em parceria com a Prefeitura, Organizações Não Governamentais (ONGs) e advogados para explicar como os moradores podem obter os benefícios sociais, além de buscar doações de alimentos e roupas para os moradores.

“Muitos ainda não sabem os seus direitos, e a situação de vulnerabilidade agravou após a pandemia de covid”, disse a líder comunitária.

Em Campinas, o Bolsa Família atendeu cerca de 61 mil pessoas no mês passado. No entanto, além dos programas federais, o CadÚnico na cidade, que é gerenciado pela Secretaria Municipal de Assistência Social, Pessoa com Deficiência e Direitos Humanos, garante acesso a outros três benefícios mantidos pela prefeitura: Renda, Nutrir e Viva-Leite, este último mantido em convênio com o governo do Estado. Eles garantem desde a entrega diária de um litro de leite até o valor mensal de R$ 201,61.

Essas ações são desenvolvidas em conjunto com outras voltadas a garantir fonte de renda para as pessoas atendidas, como a Feira da Mulher Empreendedora, que atende cerca de 2 mil participantes. Quando ela foi iniciada, em março de 2022, eram 80 mulheres.

“A importância não é só de geração de renda, mas também a superação social”, afirmou a secretária municipal de Assistência Social, Vandecleya Moro. Devido ao resultado, o programa foi transformado em uma política pública da administração por meio de lei sancionada há pouco mais de um mês.

Para a economista Eliane Rosandiski, é importante o CadÚnico estar sob controle municipal, pois pode ser usado como um instrumento para mapear as necessidades de cada região de Campinas em investimentos de infraestrutura e desenvolvimento de ações para melhorar a qualidade de vida dos moradores.

O “Mapeamento da Vulnerabilidade” identificou que as regiões Sul e Sudeste de Campinas concentravam 52% famílias inscritas no CadÚnico, enquanto a Leste tinha a menor proporção, 11%.

Além disso, 30% dos participantes da zona Sul moravam em casa de alvenaria, mas sem revestimento nas paredes, e 76% tinham rede coletora de esgoto ou pluvial. Na opinião da pesquisadora do Observatório PUC-Campinas, os dados podem ajudar a envolver a capilaridade de órgãos que desenvolvem ações sociais na busca de soluções para a população, como entes públicos, entidades sociais e ONGs.

O diagnóstico mostrou 67.182 famílias inscritas no CadÚnico em situação de pobre e extrema pobreza, incluindo muitas crianças, adolescentes e jovens. “Se não forem desenvolvidas políticas compensatórias e de estímulo de volta à escola, perderemos uma camada muito grande da população”, explicou Eliane Rosandiski. Para ela, a falta de intervenções imediatadas comprometerá o futuro de uma parcela da população produtiva, perpetuando o ciclo da pobreza.

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