Desde 2018, Tribunal recebeu 818 processos trabalhistas do gênero; maioria dos reclamantes pede reconhecimento da existência de vínculo empregatício
Ponto de encontro de trabalhadores “parceiros” das empresas de App: segundo o desembargador João Batista Martins César, “o trabalho em plataformas por aplicativos é um divisor da humanidade” (Dominique Torquato)
Desde 2018, o Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (TRT-15) registrou 818 aberturas de processos contra cinco empresas que atuam em aplicativos de delivery e mobilidade urbana. A maioria desses casos foi contra a gigante na entrega de alimentos iFood, que, sozinha, concentra 45,8% ações. São casos de trabalhadores que buscam a comprovação de vínculo empregatício após jornadas extensas de trabalho, que chegam até a 15 horas por dia, além de acidentes não indenizados. Os casos mais graves referem-se ao trabalho infantil, devido à falta de fiscalização da empresa sobre "parceiros" cadastrados na plataforma.
De acordo com o desembargador do TRT-15, João Batista Martins César, a dificuldade desses processos mora na falta de regulamentação. A reforma trabalhista, aprovada no ano de 2017, corrobora com a situação e dificulta o reconhecimento de vínculo empregatício desses trabalhadores. Martins aponta que já houve casos vitoriosos, mas são a exceção dentro do grande volume de processos.
Conforme dados do TRT-15, a região teve, desde 2018, 375 processos contra a iFood. Esse índice vem crescendo desde 2020. Naquele ano haviam sido abertos 46 processos. No ano seguinte, em 2021, foram 128 e, só neste ano, até o mês de julho, 113 casos. Do total registrado na série histórica, 194 foram apenas em fóruns do município de Campinas.
Outros aplicativos que funcionam com o mesmo modelo de trabalho e que também tiveram processos abertos por trabalhadores foram o Rappi, com 25 processos, e o Food Delivery, com oito demandas desde 2018, registrados no TRT-15. Na outra frente, os aplicativos de mobilidade urbana somam, também desde 2018, 410 processos no TRT-15. Desse total, 53,6% dizem respeito a reclamações contra a Uber e 46,3% contra a 99. Já nos casos registrados apenas em fóruns de Campinas, 65 foram contra a Uber e 30 contra a 99.
A queixa mais comum nesses casos diz respeito a descuidos da empresa com os trabalhadores, como não ajustar taxas de serviço e à falta do chamado vínculo empregatício, quando os empregados se sentem funcionários da empresa por cumprirem jornadas exaustivas de trabalho.
Gigante da alimentação
Na manhã da última sexta-feira, Jorge*, de 33 anos, aguardava o pedido de uma corrida em uma rua no bairro Cambuí. Ele estava com uma calça de moletom surrada e jaquetas, para se proteger do frio que beirava os 13 graus. Enquanto sua moto estava estacionada, ele se movia de um lado para o outro na calçada, para se aquecer. A bag vermelha, na qual leva os alimentos, estava encostada em um muro. Eram quase 11 horas. Por baixo do moletom surrado, ele escondia as cicatrizes na perna direita de um acidente sofrido no ano passado, enquanto fazia uma entrega. Só não desistiu de trabalhar no aplicativo, onde está cadastrado há um ano e dois meses, porque não conseguiu vaga no mercado formal.
"No dia 22 de novembro do ano passado eu caí de moto. Sofri um acidente enquanto fazia entrega e quebrei a perna. Fiquei três meses afastado e não me deram nenhuma assistência. Zero. Na época, me falaram que prestavam assistência. Mas corri atrás, liguei, mandei mensagem ao suporte e falaram que só em caso de sequela permanente ou morte. Como eu tinha ficado três meses e voltei a trabalhar, eles não me pagaram nada. Nenhum centavo. Quando voltei, ainda voltei mancando. Mas não dava para ficar em casa", conta.
Jorge tem três filhos. Nesse período em que ficou afastado, contou com ajuda da mãe, do pai e de um irmão. Sua esposa, disse, também trabalha, mas seu salário de quatro horas é insuficiente para sustentar a família de cinco pessoas. "Hoje tenho duas hastes de ferro de fora a fora. Ultimamente tenho trabalhado das 8h ate às 23h por cinco, seis dias por semana. E como eu aguento? São três filhos", frisou.
Pedro*, de 25 anos, foi mais categórico. "A empresa só rouba nós", disse. "Mas para quem precisa, tipo eu, que tem dois filhos pequenos, não tem o que fazer. Tem que ir pra rua, mesmo sendo roubado". Ele conta que há pouco tempo um colega sofreu um acidente enquanto fazia uma entrega, avisou a empresa, mas mesmo assim o aplicativo seguiu enviando corridas para ele. Por não pegá-las, ele foi bloqueado por 48 horas.
"A obrigação da empresa era não mandar mais corrida para ele, mesmo assim a plataforma estava mandando corridas. E ficou por isso mesmo. Eu já perdi minha conta também. Minha bicicleta tinha quebrado a corrente e atrasei a entrega. Aí o cliente reclamou. Minha conta foi deletada e até hoje não tive resposta", contou. Pedro continua trabalhando no aplicativo, mas agora está de forma irregular, usando a conta de outra pessoa para poder realizar as entregas, já que a plataforma não desfez o bloqueio contra ele.
Trabalho infantil
No Cambuí, vários grupos de trabalhadores iam se concentrando em diversos pontos com a proximidade do meio-dia daquela sexta-feira. Em outro ponto, Marcelo*, de 24 anos, lembrou que havia entrado no aplicativo oito anos antes, quando ainda tinha 16 anos. Adolescentes, como ele era, são comuns de se encontrarem na plataforma. A partir de perfis criados com o nome de outras pessoas, eles ingressam no aplicativo e realizam entregas com auxílio de bicicletas.
Alexandre Martins Silva, de 37 anos, conta que encontrou um desses adolescentes no bairro Chácara Primavera. "Eu fazia uma entrega e acabamos nos encontramos. Ele me contou que quem havia criado o perfil para ele era a dona de um estabelecimento e com isso ele podia fazer as entregas de bicicleta", disse. De acordo com o desembargador Martins, entre os processos registrados contra a plataforma não há casos de trabalho infantil. Mas ele pondera que isso ocorre pela falta de percepção desses grupos em identificar que isso é uma irregularidade.
"Essa é uma das piores formas de trabalho infantil", enfatiza Martins. "Não há dados porque é tudo muito novo. Na questão do trabalho infantil, há quem só reclame lá na frente, quando perceberem que foram exploradas numa situação de trabalho infantil", aponta.
Falta de vínculo
Já nos processos consolidados, o desembargador destaca que há aumento de denúncias conforme se amplia a consciência dos trabalhadores na busca por segurança. "É um problema que o mundo está enfrentando. O trabalho em plataformas por aplicativos é um divisor da humanidade. A grande questão é se, de fato, esses trabalhadores são autônomos ou se estão enquadrados em uma nova forma de subordinação. Num primeiro momento, essas empresas estavam querendo vender a ideia de que não há subordinação, não há vínculo de emprego. Só que isso, tanto em países da Europa, na Austrália e nos Estados Unidos, onde o sistema judiciário é diferente, essas empresas já vêm sendo condenadas em ações trabalhistas que reconhecem esses vínculos".
No Brasil, os aplicativos não possuem uma regulamentação. A própria reforma trabalhista, no ano de 2017, aprece como um dos empecilhos para esses trabalhadores manterem seus direitos. Nesse contexto, até a questão de horário trabalhado, uma reivindicação do século 19, se perde, fazendo com que trabalhadores cheguem a cumprir até 15 horas de serviço. Nesses processos registrados na região, nos quais há a busca por vínculo, essa questão aparece no pedido de pagamento de horas extras e também na jornada extenuante.
A sindicalização, aponta o desembargador, poderia ser uma alternativa para reivindicar melhorias para essa categoria de trabalhadores, além da urgência em debater o modelo que no qual estão inseridos a partir de uma legislação que contemple e regule esse formato de trabalho. Professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, o sociólogo Ricardo Antunes, que estuda o conceito de plataformização/uberização do trabalho, aponta que o aumento dos processos corrobora com a urgência em debater a situação.
"Não estamos discutindo aqui se o trabalho em plataforma deve existir ou não. O que é preciso ter é direito. Um trabalho com dignidade não pode flertar com a escravidão digital. Basta ver o número de acidentes com uberizados, veja os adoecimentos por não urinar, por beber pouca água, por não conseguir comer e por não ter direito algum. As empresas estão ganhando na casa dos milhões e dizem que foi a pessoa que buscou aquele trabalho. Mas sabemos: Quem precisa de emprego busca até o inferno", apontou o professor. Para as próximas semanas, trabalhadores vinculados ao iFood programam uma greve contra o aplicativo, com a qual devem cobrar nas ruas melhorias dessas condições.
O QUE DIZEM AS OPERADORAS DE APLICATIVOS
A reportagem procurou os aplicativos citados, apontando quais os problemas registrados nos processos e as acusações feitas pelos próprios trabalhadores.
IFOOD
A iFood disse, em nota, que os entregadores parceiros "são livres para escolherem quando, onde e por quanto tempo gostariam de se dedicar à plataforma". Também disse que a empresa defende "há mais de um ano" que haja uma regulamentação do trabalho em plataformas digitais, por entender que "o limbo regulatório é prejudicial para todos".
"O iFood defende, inclusive, que as empresas assumam a maior parte da contribuição tornando, assim, mais acessível o ingresso à previdência para o trabalhador de plataforma digital", diz trecho.
A empresa ainda reiterou que oferece uma "série de vantagens" aos entregadores. "Uma dessas vantagens, por exemplo, é a cobertura dos 200 mil entregadores parceiros gratuitamente através de 7 seguros diferentes. As coberturas contemplam, em rota de entrega ou retorno para casa, acidentes pessoais, lesões temporárias, óbito, e podem se estender inclusive a seus familiares, como cônjuges e filhos com apoio emocional e educação financeira para famílias por eventual fatalidade. Diversas outras vantagens estão no programa Delivery de Vantagens, que contempla descontos de até 80% em remédios e exames estendido a dependente; incentivo à educação, além de descontos em produtos e serviços com diversas empresas parceiras", apontou.
Já sobre a situação envolvendo menores de idade, a iFood disse que os termos de uso da plataforma exigem que a pessoa interessada seja maior de idade e qualquer infração a este requisito implica em "penalidades explícitas nos termos, como a desativação permanente da conta". "O iFood ressalta ainda que usa a tecnologia OCR para validação dos dados no momento do cadastro e utiliza ferramenta de reconhecimento facial para autenticação de identidade regularmente"
RAPPI
A Rappi também alegou que os entregadores cadastrados atuam de forma "independente, de modo que eles possuem a liberdade de se conectarem e desconectarem à plataforma do App quando e onde quiserem". A empresa também disse que oferece uma série de soluções em apoio aos entregadores independentes, "como atendimentos presenciais, suporte em tempo real, capacitação online, informativos com dicas de segurança no trânsito, botão de emergência para situações de risco de saúde ou segurança e seguro para acidente pessoal, invalidez permanente e morte acidental".
Sobre trabalho infantil, a Rappi disse que todos os trabalhadores precisam ter 18 anos ou mais e que são solicitados, para se inscrever na plataforma a inclusão de fotos, documentos pessoais e outros dados comprobatórios. Aos motociclistas e motoristas também é exigida CNH válida. "Após o cumprimento dessas exigências, a empresa realiza uma verificação de segurança, a partir de fontes de dados públicos, para que todas as partes - o usuário, o próprio entregador e o Rappi - façam parte de um ecossistema seguro. Com o cadastro efetivado, o sistema faz reconhecimento facial em tempo real para confirmar a identidade do entregador independente quando ele realiza o login na plataforma", explicou.
99
Em nota, a Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Abomitec), que representa a 99, disse que "no modelo de negócios criado pelos aplicativos, motoristas e entregadores são profissionais independentes e são eles que contatam as plataformas para prestar seus serviços aos clientes usuários, podendo definir seus horários, as viagens que desejam realizar, e até trabalhar por meio de aplicativos concorrentes simultaneamente".
Por esse entendimento, a Abomitec apontou que as empresas associadas "entendem que neste modelo de negócios não existe uma relação trabalhista nos moldes da CLT".
Ela também apontou que "a inexistência do vínculo de emprego entre parceiros e empresas de aplicativo vem sendo confirmada nas instâncias mais altas do Judiciário". Como os demais aplicativos, a Abomitec também defendeu a necessidade de novos marcos regulatórios sobre a relação entre as plataformas e motoristas e entregadores. Nesse sentido, ela disse que lançou uma Carta de Princípios em que defende a inclusão dos profissionais independentes de aplicativos no sistema de proteção proporcionado pela Previdência Social.
UBER
A Uber defendeu os mesmos pontos, alegando que "os motoristas parceiros não são empregados e nem prestam serviço à Uber: eles são profissionais independentes que contratam a tecnologia de intermediação digital oferecida pela empresa por meio do aplicativo". A Uber negou que existam metas a serem cumpridas e que não há obrigação de exclusividade na contratação da empresa e que também não existe controle de cumprimento de jornada.
Como os demais aplicativos, disse que defende adequações na legislação que permitam às plataformas inscrever os trabalhadores na Previdência "e fazer pagamentos para reduzir o valor de contribuição de motoristas e entregadores". Em relação a jornadas longas, a Uber defendeu que "o aplicativo fica indisponível por seis horas, após 12 horas de condução pela plataforma". Segundo a empresa, a ferramenta também fornece notificações ao motorista reforçando a necessidade de descanso. A reportagem não conseguiu contato com a Food Delivery.