Diante da morosidade da Justiça, empresas criaram novo filão de negócio
Empresas adquirem créditos de ações trabalhistas já julgadas em primeira e segunda instâncias, com sentenças favoráveis aos trabalhadores; TRT da 15ª Região julgou 183.488 processos no 1˚ semestre deste ano (Gustavo Tilio)
Trabalhadores com ações na Justiça estão recorrendo à venda do crédito do processo para antecipar o recebimento do valor. É um filão de negócio relativamente novo e com potencial bilionário. De acordo com o Tribunal Superior do Trabalho (TST), os créditos trabalhistas no País somam R$ 620 bilhões, aumentando, em média, R$ 30 bilhões por ano a partir de novas sentenças proferidas.
Somente o Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, sediado em Campinas, o segundo maior do País, julgou 183.488 processos no primeiro semestre deste ano, sendo 124.749 em primeira instância e 58.739 em segunda. O aumento é de 8,14% em comparação aos 169.683 julgados de janeiro a junho de 2021. Mas o TRT é alimentado o tempo todo com novos processos. Nos primeiros seis meses deste ano, 117.084 ações foram impetradas no Tribunal.
A auxiliar de frigorífico Cristiele Aparecida da Silva Amorim, de Hortolândia, vendeu recentemente os créditos de uma ação que move há sete anos contra uma empresa em que trabalhou. Tomou essa decisão por não ter previsão de quando iria ver a cara desse dinheiro, para poder quitar a dívida de um financiamento. “Estava precisando do dinheiro para resolver esse empréstimo e agora, pelo menos, estou tranquila”, afirma.
Esse é um negócio com vantagens e desvantagens. Cristiele se livrou de uma dívida corrigida mensalmente por juros e correção monetária, mas abriu mão de 60% do valor da ação a que teria direito, como deságio cobrado pela empresa que adquiriu o ativo trabalhista. “Não foi tão vantajoso, mas foi a solução que encontrei”, diz a auxiliar de frigorífico. Na ação, ela cobrava adicional noturno, hora-extra e outros direitos trabalhistas.
Antecipações e precatórios
A operação de venda é semelhante à antecipação de restituição de Imposto de Renda ou do 13º salário que as instituições financeiras fazem. Nesses casos, os cinco maiores bancos cobram juros em torno de 2% ao mês.
No País, há em torno de 15 empresas que atuam com a compra de créditos trabalhistas, com base no artigo 286 do Código Civil, que trata da cessão de créditos.
As pioneiras surgiram há quatro anos, mas houve expansão durante a pandemia de covid-19, que agravou a crise econômica do País, marcada pela alta da inflação, achatamento do poder aquisitivo e elevada taxa de desemprego. Essas empresas sugiram na esteira da compra de precatórios, que é um negócio comum no Brasil, que tem deságio entre 30 e 40%. O precatório é uma requisição de pagamento de uma quantia a ser paga por ente público (União, Estado, município, autarquias ou fundações) após condenação judicial.
Polêmica
O secretário-geral adjunto da Subseção Campinas da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), André Amin Teixeira Pinto, alerta, porém, que não há unanimidade na Justiça Trabalhista sobre a venda dos créditos, com juízes não aceitando a transferência do crédito ao darem a sentença. De acordo com ele, a posição é baseada na irreversibilidade desse tipo de ação e por ser um crédito de natureza personalíssima.
“Essa é uma matéria muito controvertida. Muitos juízes do TRT-15 não aceitam a transferência”, explica. O secretário-geral da OAB lembra que o artigo 100 da Consolidação dos Provimentos da Corregedoria Geral da Justiça do Trabalho veta a cessão de crédito.
Isso porque há substituição do polo ativo do processo para um cessionário. Amin também alerta que as pessoas devem pesquisar a credibilidade da empresa com quem negociam e também esclarecer como ficará o pagamento dos honorários do advogado responsável pela ação trabalhista, que normalmente é de 30% do valor total da indenização a ser paga.
Outra visão
O juiz trabalhista e doutor em Direito, Otavio Torres Calvet, não vê problemas na venda dos créditos. “Trata-se de exercício do legítimo interesse do titular de um crédito em negociá-lo, seja para não correr o risco de eventual inadimplemento, seja para receber ao menos parte do valor devido rapidamente. E nada mais natural, pois, afinal de contas, os trabalhadores que buscam a Justiça do Trabalho pretendem, ao fim e ao cabo, receber dinheiro”, avalia.
Para ele, a cultura trabalhista sempre foi avessa à prática da cessão de crédito com base na natureza alimentar do crédito trabalhista, que seria para a subsistência do requerente. É o mesmo princípio empregado para salários, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios previdenciários e indenizações por morte ou invalidez. No caso das verbas resultantes de ações, “tais entendimentos mostram uma época, digamos, romântica da Justiça do Trabalho, onde o sentimento era puramente de fazer valer direitos trabalhistas para implementar a justiça social preconizada em nossa Constituição, erradicando desigualdades e pacificando a histórica luta de classes”, completa o juiz, que já escreveu artigos sobre o tema.
Crescimento
Uma empresa que negocia pela internet a compra de ativos trabalhistas foi criada há um ano e já ultrapassou a marca de 500 créditos de ações adquiridos. “Trata-se de uma alternativa para quem tem processos trabalhistas em andamento e precisa antecipar o recebimento desse valor”, afirma o sócio-fundador e diretor de Operações da companhia, Herbert Camilo.
No final do ano passado, a empresa recebeu um aporte de R$ 30 milhões de um grupo de investidores para expandir a atuação. “Não fazemos nada contra o Código Civil, nada contra a OAB”, completa o empresário. A empresa somente compra ações com sentença proferida em segunda instância, ou seja, a sentença judicial a favor do trabalhador já foi proferida, com o recurso em andamento na Justiça questionando o valor a ser pago.
A empresa analisa, individualmente, cada processo para avaliar a compra e promete liberar o dinheiro em até 24 horas após a assinatura do contrato. Ela paga até 80% do valor líquido que o reclamante tem direito no processo. O deságio leva em conta o tempo para pagamento da ação, risco de revisão do valor e solvência (capacidade da empresa de honrar todas as suas obrigações financeiras). “Se depois que compramos o crédito, o valor for reduzido ou a empresa entrar em falência e não pagar, o prejuízo é nosso”, afirma Camilo. No caso do valor pago no futuro ser superior ao negociado, o cliente recebe uma diferença, garante o diretor de Operações.
Ele lembra que nunca recebeu os direitos trabalhistas devidos pela primeira empresa onde trabalhou, da área de turismo, em 1998. “Ela faliu e não recebi nada após 24 anos”, afirma. “Esperar, neste país, custa caro”, completa.
A empresa trabalha com duas opções de compra, que inclui assumir imediatamente os custos do advogado ou deixar para pagar os honorários de 30% após receber a ação, com esse valor já sendo descontado automaticamente do montante.
Em ambos os casos, a companhia passa a cuidar integralmente do processo, com o cliente e o advogado inicial não tendo mais envolvimento. “Muitas pessoas estão com dificuldade para pagar suas contas e até mesmo sobreviver, por não conseguirem arcar com itens básicos como alimentação e moradia. Antecipar os valores das ações trabalhistas é uma maneira de ajudá-las”, diz Camilo.