ESPECIAL

Tabu marca elo entre mulheres e a bebida

A reprovação da sociedade reforça a vergonha em assumir o problema

Fábio Gallacci
24/04/2013 às 09:37.
Atualizado em 25/04/2022 às 18:59
No grupo de alcoólicos do AA do Bosque, em Campinas, dos 100 participantes que frequentam as reuniões, apenas cinco são mulheres  (Janaín Nascimento/Especial para a AAN)

No grupo de alcoólicos do AA do Bosque, em Campinas, dos 100 participantes que frequentam as reuniões, apenas cinco são mulheres (Janaín Nascimento/Especial para a AAN)

Dona de casa, esposa, mãe, avó e uma alcoólatra que costumava esconder suas garrafas embaixo da pia da cozinha para que ninguém da família a visse bebendo. Maria (nome fictício), de 69 anos, está sóbria há mais de uma década, mas sabe que não pode brincar com a dependência.

“Decidi procurar ajuda quando meu neto, uma criança, perguntou a razão de eu beber tanto. Chorei naquele dia”, lembra. Homens e mulheres estão lado a lado em seu papel na sociedade, no mercado de trabalho e também no balcão do bar. Uma pesquisa recente divulgada pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) mostra que, entre 2006 e 2012, o número de mulheres que consomem o álcool de forma excessiva aumentou 24% no Brasil.

E os riscos só aumentam: Uma criança nascida de uma mãe que bebe álcool durante a gravidez pode ter sérios problemas de saúde, como a deficiência de desenvolvimento, o retardo mental e até a morte. Além disso, alguns recém-nascidos ainda apresentam crises de abstinência, com tremores no corpo e choro, e uma taxa excessiva de álcool na corrente sanguínea. Tudo herdado da mãe dependente.

A questão envolvendo mulheres e bebidas ainda é um tabu. No grupo Alcoólicos Anônimos (AA) localizado no bairro Bosque, em Campinas, por exemplo, dos quase cem participantes das reuniões, apenas cinco são mulheres. “Elas não vêm por vergonha, por medo, por ciúme do marido. Quando são jovens é mais difícil ainda. Eu só digo o seguinte: Procure ajuda! Não fique sofrendo dentro de casa, escondendo bebida. O AA é constituído por uma maioria de homens e eles são muito bons, carinhosos e respeitadores. Nos recebem de braços abertos”, convida Maria, que trabalha ativamente no local. Como se não bastassem tantos desafios para superar o vício, os frequentadores do AA no Bosque ainda enfrentam mais uma provação: sua sede fica ao lado de um bar.

Há 15 anos envolvida com o tema da dependência entre as mulheres, a pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e psicóloga Dione Ribeiro produziu, em 2008, uma tese de mestrado com o objetivo de mostrar a razão da falta de interesse por ajuda do público feminino. “Até para achar essas mulheres para a pesquisa eu tive que bater na porta de cada uma delas. Foi bem difícil. Existe o estigma da mulher que bebe. É reprovável que a mulher beba. Já o caso do homem é mais aceito pela sociedade. Outra coisa é que, muitas vezes, a família depende dos cuidados da mulher e ela não tem condições de deixar seus afazeres para buscar um tratamento. Elas sofrem uma sobrecarga que as impede de ir atrás de ajuda”, diz a psicóloga. “Mas o que aparece mais é o medo do olhar do outro”, acrescenta, reforçando a questão da vergonha em assumir o problema.

Dione ressalta que o abuso do álcool entre o sexo feminino ocorre, geralmente, como uma fuga de outro problema. “Quadros de depressão ou abuso são exemplos. É muito comum ver mulheres que têm outros problemas e que acabam usando substâncias para minimizar essa dor. Para elas, a dependência está muito associada ao sofrimento. Enquanto os homens em tratamento falam da bebida, as mulheres citam outras dores”, explica. “O ideal é que existam ambulatórios de atendimento especializado para a mulher e que as clínicas ofereçam um tratamento focado nas necessidades femininas”, reforça.

Outro ponto importante mencionado pela psicóloga são os riscos para a saúde. Mesmo com menos quantidade de bebida e de tempo de uso do álcool, elas podem desenvolver problemas graves, como a produção de células malignas que podem gerar um câncer.

Na rua

Um levantamento feito este ano pela Secretaria Municipal Cidadania, Assistência e Inclusão Social mostrou que existem atualmente 83 mulheres em situação de rua em Campinas. Desse total, pelo menos 50% têm algum tipo de contato com o álcool. O índice de uso dessa droga lícita é maior do que qualquer outra substância tida como proibida.

Primeiro gole inicia na brincadeira e em eventos de família

O primeiro gole é quase sempre por brincadeira e vem das mãos de quem deveria se preocupar com isso. Seja em casa ou em eventos sociais, cada vez mais crianças têm contato com o álcool. Um estudo realizado em 2007 pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em conjunto com a Universidade Complutense, de Madri, na Espanha, revelou um alto índice de consumo de álcool entre crianças espanholas e brasileiras, mais precisamente na faixa etária dos 11 anos.

“As influências são fortes e a família é, sem dúvida, a maior delas. É importante que haja uma reeducação em casa e nas escolas para evitar que as crianças tenham esse contato tão cedo com o álcool. É preciso trabalhar com a prevenção. O processo de educação e saúde é fundamental”, alerta a professora doutora da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp Kátia Stancato. “A expectativa é que esses números possam orientar ações de conscientização e educação permanente de pais, alunos, professores e comunidade para um dos mais graves problemas de saúde pública: o consumo de álcool e tabaco cada vez mais frequente em idades precoces”, acrescenta.

Pelos resultados da pesquisa, 74,4% dos alunos espanhóis e 43,8% dos brasileiros já haviam ingerido bebidas alcoólicas. O curioso é que, quando o assunto é o consumo de tabaco, esse percentual cai para 21,9% na Espanha e 12,7% na amostra brasileira. O estudo ainda aponta que uma porcentagem elevada de pais e de mães consome bebidas alcoólicas em casa ou em eventos sociais, o que poderia indicar um modelo de conduta por parte dos filhos.

A maioria dos participantes espanhóis e brasileiros da pesquisa obteve a bebida em bares, lugares de diversão e em supermercados. Os participantes de ambos os países apontaram que o consumo do álcool teria sido “uma forma de celebração” e uma saída para “esquecer os problemas”, o que potencializa o uso, ainda mais em grupo.

Ritual

Ainda de acordo com o levantamento, as festas de Natal e Ano Novo, casamentos e batizados são as principais datas em que o consumo das drogas lícitas é mais ostensivo. “Como se essas datas fossem um ritual de iniciação”, explica o estudo. Kátia aponta que a existência de uma legislação mais firme contra a venda de bebidas alcoólicas para menores de 18 anos já é uma vitória no Brasil, mas que tantos os pais quanto a sociedade em geral deveriam se preocupar na prevenção do problema. “Felizmente, existe uma lei. Mas espero que os pais não comprem o álcool para que os filhos consumam. Repito que é primordial um trabalho que valorize a educação e a saúde”, reforça a professora doutora. )

'Não sou sem-vergonha. Sou portadora do alcoolismo, que atinge homens e mulheres’<

Depoimento de Maria (nome fictício), de 69 anos, 14 anos em beber, escondia bebidas em armários embaixo da pia por achar que ninguém descobriria a sua dependência

“Hoje não tenho vergonha de dizer que sou alcoólica porque não tenho culpa de ser portadora dessa doença. Eu não pedi para ser alcoólica, mas, no momento em que fiquei sabendo do meu problema, me dispus a procurar ajuda. Durante anos eu bebi exageradamente. No início foi muito bom. Eu já era alegre e a bebida me deixava mais solta ainda. Nos momentos em que eu me sentia só, quando meu marido viajava, a bebida era minha companheira. O tempo foi passando e, a partir das doses só no final de semana, passei a beber todos os dias. Eu não percebia que a bebida já se tornara um hábito. Como não estava me fazendo mal, a cada dia eu aumentava mais as doses e ficava bêbada com mais frequência.

Passei a ter apagamentos, esquecia as coisas. Ressaca? Muito pouco! Eu era forte! E ai daquele que falasse sobre minha maneira de beber! Eu bebia a hora que eu queria e era com meu dinheiro! Meus filhos sofriam e eu não percebia. Que imagem vem à nossa mente quando pensamos em uma mulher? Uma criatura doce, meiga, carinhosa, mas eu já não era mais assim. Eu sofria. Que imagem vem à nossa mente quando pensamos em uma esposa? A companheira de todas as horas, dedicada, amorosa. Já não era mais isso. Que imagem vem à nossa mente quando pensamos em uma mãe? Uma santa, doce, perfeita, que transborda amor, paciente e carinhosa, a rainha do lar. Como? Eu só pensava em beber.

Só acordei desse pesadelo quando há alguns anos meu netinho me perguntou: “Vovó, por que você bebe tanto?” Eu chorei. Não tinha resposta à pergunta daquele anjo.

Eu lutava comigo mesma, pois havia perdido o amor por mim! E a bebida sempre vencia.

Mas tive meu despertar espiritual: inexplicavelmente me vi diante da porta de um grupo de mútua-ajuda de Alcoólicos Anônimos.

Queria buscar uma saída para mim, queria pelo menos me entender, pois achava que era a única mulher que bebia exageradamente. Como eu bebia dentro de casa, não conhecia outra mulher que bebesse como eu. Queria também entender por que eu era diferente da minha mãe, diferente da minha avó, diferente da minha irmã, diferente da minha filha? Por que para tudo o que eu ia fazer tinha que beber?

Neste Grupo de A.A. encontrei todas as respostas. Não sou sem-vergonha. Sou portadora da doença do alcoolismo, que atinge homens e mulheres, brancos e negros, de qualquer idade e de qualquer classe social.

Fiquei sabendo também que para o alcoolismo não há cura, mas que pode ser detido e foi tão simples... A luzinha da sala piscava e se lia: “Evite o primeiro gole!”. Os companheiros me encorajavam: “Viva somente as 24 horas! Só por hoje!”

Você que está lendo este depoimento e talvez esteja passando pelos mesmos problemas que eu passei, lembre-se: a Irmandade de Alcoólicos Anônimos está disposta a ajudá-la, mas é você quem deve procurar ajuda".

OS MALES DO ÁLCOOL PARA OS RECÉM-NASCIDOS*

1) Pequenos para a idade gestacional ao nascimento ou pequena estatura em comparação com seus pares

2) Anormalidades faciais, como olhos pequenos e boca fina

3) Coordenação física pobre

4) Comportamentos hiperativos

5) Dificuldades de aprendizagem

6) Deficiência de desenvolvimento (atrasos de fala e linguagem)

7) Retardo mental ou baixo QI

*Fonte: Canbler Saúde

A MULHER E O ÁLCOOL*

1) O efeito de uma cerveja no corpo feminino equivale ao de duas tomadas por um homem de mesmo peso.

2) Para os mesmos níveis de ingestão, o risco de cirrose nas mulheres é três vezes maior.

3) As que tomam de 28 a 41 drinques por semana (1 drinque = 150ml de vinho = 1 lata de cerveja = 45ml de bebida destilada) apresentam risco de cirrose 16 vezes maior do que o dos homens abstêmios.

4) Dois ou três drinques diários aumentam em 40% o risco de surgir hipertensão arterial, bem como o de derrame cerebral hemorrágico.

5) Mulheres habituadas a ingerir de 2,5 a 5 drinques por dia, apresentam probabilidade 40% maior de desenvolver câncer de mama.

6) O uso continuado de álcool reduz a densidade da massa óssea em ambos os sexos, mas a probabilidade de provocar osteoporose é maior no feminino.

7) A prevalência de depressão nas mulheres que abusam de álcool é de 30% a 40%. Talvez por essa razão, tentem o suicídio quatro vezes mais do que as abstêmias.

8) A bebida pode causar problemas ao feto. A ingestão de álcool durante a gestação eventualmente provoca distúrbios fetais que vão do retardo de desenvolvimento à chamada síndrome alcoólica fetal.

Fontes: www.drauziovarella.com.br e Nurses’ Health Study

ONDE BUSCAR AJUDA

Sede de Alcoólicos Anônimos (AA) - Campinas

Rua Proença, 373 - Bosque

Contato - (19) 3234-8088

e-mail: [email protected], ou acesse o site

www.alcoolicosanonimos.org.br

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