ADEUS À FÁBRICA

Símbolo de Campinas, Chapéus Cury foi quase totalmente demolido

Foram preservadas somente a chaminé e a parede da fachada, que são tombadas como patrimônios históricos

Edimarcio A. Monteiro
26/05/2022 às 08:54.
Atualizado em 26/05/2022 às 08:54
Após a demolição das paredes internas e telhados do prédio centenário, no Botafogo, escavadeira e funcionários de construtora fazem a limpeza do terreno onde será construído um empreendimento imobiliário (Gustavo Tilio)

Após a demolição das paredes internas e telhados do prédio centenário, no Botafogo, escavadeira e funcionários de construtora fazem a limpeza do terreno onde será construído um empreendimento imobiliário (Gustavo Tilio)

O centenário prédio da Fábrica de Chapéus Vicente Cury, um dos marcos do processo de industrialização, deu adeus a Campinas. Na Rua Barão Geraldo de Rezende, no Botafogo, continuam em pé apenas a chaminé e a parede da fachada, que foram tombadas pelo patrimônio histórico e, por isso, deverão ser incorporadas pelo empreendimento imobiliário que será instalado no terreno de 5,2 mil metros quadrados. 

As paredes internas de Chapéus Cury, como a empresa ficou popularmente conhecida, foram derrubadas. No local, a céu aberto, escavadeira e funcionários da construtora fazem a limpeza da área, que está em processo de preparação para o início das obras do condomínio. “Demorou para alguém assumir isso”, afirma o hoje aposentado Antonio de Souza Filho, 79 anos, que trabalhou na fábrica quando tinha 15 anos. 

Ele foi a terceira geração da família a fazer parte do quadro de funcionários da fábrica, sendo antecedido pelo avô Lauro Lopes Aragão e os tios maternos. Antonio nasceu e foi criado nas proximidades da fábrica, deixando o Botafogo para seguir carreira no mundo das corridas automobilísticas em São Paulo. “Trabalhei na fábrica por dois anos, tutelado pelo meu avô. Na época, era um rebelde sem causa”, diverte-se, ao recordar quando foi auxiliar de escritório no setor de Recursos Humanos da Cury.

Antonio trabalhou na fábrica em seu auge, no final da década de 1950, quando havia 800 funcionários e produzia 3 mil chapéus por dia. Era uma época onde homens vestiam terno e chapéu e mulheres usavam elegantes vestidos. Os trajes começavam a contrastar com o blue jeans e a camiseta branca da época do nascimento do contestador rock n´roll.

Antonio voltou a ser vizinho da Cury há três anos, quando retornou para Campinas. Ontem, a sua caminhada pelas ruas do Botafogo foi acompanhada pelo barulho das máquinas e britadeiras usadas nas obras da Cury. Simpático e de bom papo, ele tirava da memória as lembranças de sua vida. “Meu avô era técnico de chapéu e veio de Limeira para trabalhar na Cury em 1923”, conta. A fábrica havia instalado, há pouco tempo, o seu primeiro barracão na Rua Barão Geraldo de Rezende.

Surgiu em 1920

O ano era 1920 quando Miguel Vicente Cury e seu pai, Vicente Cury, iniciaram as atividades da fábrica de chapéus. Eles aplicavam a experiência obtida com a oficina de reforma de chapéus que tiveram em Mogi Mirim. Era uma época em que a industrialização de Campinas estava engatinhando. A maior indústria era a Companhia Mac Hardy, fundada em 1875, fabricante de máquinas de beneficiamento de café. A empresa do escocês Gilherme Mac Hardy mantinha grandes oficinas de fundição na Avenida Andrade Neves, que empregavam 170 funcionários.

“Em meados da década de 1880, quatro estabelecimentos de fundições de máquinas e aparelhos em Campinas já empregavam por volta de 500 operários”, descreve Bruno Milanese Laurenti, autor de “O Desenvolvimento Industrial em Campinas e as Relações Sociais de Trabalho”. Mas eram exceções. “Nas primeiras décadas do século XX, o parque industrial campineiro era diversificado e a maior parte dos estabelecimentos empregava um pequeno número de trabalhadores”, completa Laurenti.

A Chapéus Cury nasceu nesse ambiente, uma época em que Campinas tinha pouco mais de 38 mil habitantes. Foi quando atraiu o técnico de chapéus Lauro Aragão, que deixou a Chapéus Prada para trabalhar na concorrente. Quando o neto Antonio começou a circular pelos escritórios, a fábrica campineira já tinha a conformação final. O então adolescente permaneceu na empresa por dois anos. 

“Eu fui fazer o que gostava”, diz o aposentado, que trocou a fábrica de chapéu pela vida de piloto, mecânico, chefe de equipe e dono de escola de pilotagem. “Eu nunca usei um chapéu na minha vida”, completa, mostrando que não pretendia seguir os passos do avô e tios. Entre suas experiências no mundo das corridas, Antonio integrou a primeira e única equipe brasileira de Fórmula 1, a Copersucar, dos irmãos Emerson e Wilson Fittipaldi Jr.

Testemunha da demolição

Agora, Antonio testemunhou a derrubada das salas, paredes e telhado da Cury, que encerrou as atividades em 2012. Para o aposentado, o condomínio que será erguido no local “vai valorizar o entorno daqui”. A empreendedora não dá detalhes do projeto. Em seu site, consta que serão erguidas duas torres residenciais, uma com três dormitórios e uma suíte e outra com três suítes. A parte térrea também deverá ter uma galeria com salas comerciais e cinema.

A área da fábrica acompanhará as mudanças pelas quais as ruas próximas passaram, hoje tomadas por clínicas, consultórios, pequenos comércios e prédios residenciais.

Seu Juá, que trabalha como guardador de carro nas proximidades da Cury há 26 anos, testemunhou a mudança do Botafogo. Pelo vitrô da parede da fachada da fábrica que restou, ele observa os trabalhos no terreno. 

Desconfiado, arisco e com medo de perder o ganha-pão, o guardador evita até dar o nome. “Eu tiro meu sustento daqui”, justifica. Porém, aos poucos, é possível obter alguma informação dele. “Sempre aparece alguém aqui para ver como está”, afirma. De acordo com Seu Juá, são parentes de ex-funcionários e pessoas que queriam conhecer a antiga fábrica de chapéus.

História e cinema 

O projeto do empreendimento imobiliário foi aprovado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Campinas (Condepacc). Mas a derrubada da fábrica tem causado uma onda de saudosismo nas redes sociais. “Para mim, essa fábrica deveria ser preservada. O prédio deveria ser usado para abrigar um museu, não ser derrubado”, comenta Stella Camargo. “É uma parte da história de Campinas que é apagada”, diz Luiz Felipe Caetano.

“Essa fábrica faz parte da história de muita gente”, diz o técnico de pintura automotiva Nilton Ferreira, que trabalha em frente da área onde ficava a fábrica. Ele fala sobre a Fábrica dos Chapéus Cury com tom de saudade na voz. “As máquinas estão trabalhando a todo o vapor”, diz. Nilton espera conseguir guardar alguma recordação do local. Ele já pediu aos responsáveis pela obra as duas luminárias de ferro que ladeiam o letreiro “Chapéus Vicente Cury”, que identifica o local, e espera ficar também com um pedaço de madeira do telhado. “É para guardar uma lembrança em casa, uma recordação. É a história de Campinas, as raízes estão aqui”, adisse.

As reações podem ser entendidas pela ligação da Chapéus Cury com a cidade. Miguel Vicente Cury, um dos fundadores da fábrica, foi duas vezes prefeito de Campinas, de 1948 a 1951 e de 1960 a 1963. Também foi vereador de 1952 a 1955. E empresta o nome a um viaduto no Centro da cidade.

A marca de chapéus ganhou fama mundial no início dos anos 1980 ao produzir o modelo usado pelo ator Harrison Ford em “Indiana Jones e os Caçadores da Arca Perdida”. O chapéu passou a ser sua marca registrada e apareceu novamente nos outros três filmes da franquia – “Indiana Jones e o Templo da Perdição”, “Indiana Jones e a Última Cruzada” e “Indiana Jones e a Caveira de Cristal”. O quinto filme da série está previsto para ser lançado em 2023, quando o arqueólogo e herói deverá ter a indumentária na cabeça.

Em 2012, quando deixou de funcionar, a fábrica foi aberta ao público para uma mostra de arte que teve o prédio como inspiração. “Ao passar pela porta de entrada, parece que voltamos no tempo. O cheiro é inconfundível, um cheiro de madeira úmida, de pelo e lã, cheiro de chapéu”, disse, na época, a cineasta Julia Zakia, bisneta do fundador. Ela produziu o premiado curta-metragem “O Chapéu de Meu Avô”, de 2004, que fala sobre Sérgio Cury Zakia, o último membro da família a comandar a fábrica.

Julia foi a organizadora da mostra de arte, que teve também exposição de fotos e outras ações. Antigos funcionários e suas famílias foram convidados para o evento. Foi como uma despedida da fábrica. Ela agora está presente apenas em fotos, vídeos, textos e nas lembranças de quem a conheceu.

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